Cheque
em branco, Millôr e o barato do cassino do Chacrinha
* Por
Urariano Mota
Ontem, na tevê
passavam ao mesmo tempo Lili Marlene e um documentário sobre Chacrinha.
Eu tinha interesse nos
dois, apesar de já ter visto Lili Marlene no cinema. É de Fassbinder.
Mas eu estava (ainda
estou) sob o impacto de “É isto um homem?”, de Primo Levi, e senti perder o
entusiasmo pelo bom filme de Fassbinder, que me pareceu ontem à noite como uma
versão da má consciência diante do nazismo.
Como uma remissão de
um crime feita por um privilegiado, de um patriota arrependido.
Então fui pro
Chacrinha. Não me arrependo. O documentário é um hit parade da angústia dos
marginalizados na ditadura.
Um desfile debochado,
baixo, do mundo da feira da carne humana. Chega
a ser cruel e brutal, insensível, quando casa as imagens das jovens
dançarinas no Cassino do Chacrinha com as das presentes das chacretes. O
documentário chega à finura de um escarro ao exigir que as senhoras sessentonas
ponham biquínis e se rebolem cantando o som do programa dos anos 60 e 70.
Tem um momento cômico,
quando Aguinaldo Timóteo fala que João Gilberto não tem voz, não sabe cantar, é
feio e de cara amarrada, como pode ser perfeito?
Mas no ponto
culminante, na entrevista com uma chacrete, ela conta que recusou “cheque em
branco” pra um encontro com um ricaço. Ela é evangélica agora, mas comenta: “se
fosse hoje…”.
Então hoje de manhã,
no café, lembrei à minha mulher um caso semelhante ocorrido com Millôr. Na
época do Pasquim, Roberto Marinho convidou Millôr para a Globo, e lhe enviou o
famoso “cheque em branco”. Que faz Millôr? Tira uma foto do cheque assinado por
Marinho e publica nas páginas de O Pasquim. Com a legenda: “A minha prostituição não vale tão pouco”.
Genial. Mas muitos
anos depois Millôr foi trabalhar para a Veja, enquanto chamava Lula de
analfabeto. Não, não é o caso de lembrar a tirada de Billy Wilder em Quanto
Mais Quente Melhor, de que “ninguém é perfeito”. Não foi bem por dinheiro.
Não foi isso, amigos.
Foi a idade, é a idade que exige
pagamento de pedágio. Poucos, poucos e raros, seguem a dignidade na velhice,
como Niemeyer, Tolstói, o Barão de Itararé, Graciliano Ramos ou Sobral Pinto.
É a idade. “É a
cabeça, irmão”, cantava Silvio Brito. Abelardo Barbosa, é um barato o cassino
do Chacrinha. Ô Terezinha, ô Terezinha….
PS do Viomundo: Millôr
Fernandes faleceu em 27 de março de 2012, no Rio de Janeiro. Ele havia iniciado
ação contra a Editora Abril, pois a Veja, sem sua autorização, incluiu as suas
obras no acervo digital da revista.
Millôr queria impedir a reprodução. No mesmo ano, o Tribunal de Justiça
de São Paulo considerou improcedente a ação indenizatória pleiteada por Millôr,
depois por seu espólio.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
A idade e a aposentadoria miserável não podem ser a justificativa para mudança de rumos. Sei que defende exatamente isso. Eu a repito porque não havia pensado nisso ainda.
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