Impunidade e desconfiança
Uma das características marcantes
da interminável e crônica crise que o País, vira e mexe, atravessa, que é,
sobretudo, moral, é a acentuada tendência que as pessoas têm para fazer
prejulgamentos. Não raro, a mera suspeita, sem provas e sem a devida
fundamentação nos fatos, é suficiente, entre outras coisas, para a imprensa
rotular uma pessoa de corrupta, ou de caloteira, ou de incompetente, ou de
criminosa etc.
Há casos e mais casos desse tipo
de ocorrência, tão conhecidos que se torna até desnecessária sua menção, com
conseqüências danosas, não raro irreparáveis, para a honra e a credibilidade
dos atingidos. Basta citar, apenas, o mais emblemático deles: o dos
proprietários da Escola de Base, de São Paulo, crucificados, vilipendiados,
enxovalhados e humilhados pelos meios de comunicação, por alegado abuso sexual
cometido contra um garotinho de 4 anos de idade e que, ao cabo das
investigações, se comprovou que eram absolutamente inocentes. Até hoje, porém,
os irresponsáveis que mancharam a reputação desses educadores, promovendo um
absurdo e criminoso linchamento público do casal, permanecem impunes. Sequer se
retrataram do crime de calúnia que cometeram.
Apesar disso, a lógica que
prevalece em nossa sociedade, infelizmente, é a de que o suspeito é que tem que
provar sua inocência, quando o bom-senso e os fundamentos do Direito prevêem
exatamente o contrário. Conhecido axioma jurídico preceitua que “o ônus da
prova cabe a quem acusa”. Entre nós, porém, o acusado é que precisa provar a
falsidade das acusações levantadas contra ele.
Muita reputação já foi
irremediavelmente manchada dessa forma. Basta que algum desafeto espalhe
rumores minimamente verossímeis sobre o comportamento de alguém, para que esses
boatos ganhem foros de verdade. Há tempos prevalece um clima de generalizada
desconfiança de tudo e de todos, sobretudo de figuras públicas. É a maldita mania
das generalizações. Como muitos políticos são pilhados em atos de corrupção –
e, estranhamente, são os que saem, invariavelmente, impunes – passa-se, até
inconscientemente, a se considerar que “todos” os políticos são corruptos.
Isso, no final das contas, chancela e justifica os delitos dos verdadeiros
infratores. E os honestos são tratados com ironia e menosprezo, encarados como
“ingênuos”, “trouxas” e “Caxias”, e vai por aí afora.
Passa-se, por conseqüência, a se
considerar as negociatas de todos os tipos e calibres, de que o País é farto,
meros atos de “esperteza”. Daí para a imitação é um pulo. É esse comportamento
que leva as pessoas a desconfiarem de tudo e de todos. Já vão muito distantes
os tempos em que a palavra empenhada ou um simples fio de barba eram garantias
suficientes (e aceitas por todos) para assegurar o cumprimento de qualquer
compromisso assumido, sobretudo financeiro.
Hoje, mesmo documentos fartamente
detalhados, meticulosamente redigidos por experientes advogados, assinados, com
duas ou três testemunhas, com um ou mais fiador, com firmas reconhecidas e com
registro em cartório, são tratados com suspeição. A decadência moral da
sociedade é tão grande que, como disse Ruy Barbosa em célebre discurso, o
cidadão “tem vergonha de ser honesto”. A culpa cabe à impunidade dos que,
comprovadamente, cometem delitos de toda a sorte, desrespeitando as normas
legais e os direitos alheios.
A Justiça, entre nós, tem se
mostrado de fato “cega”, mas somente quando os crimes são cometidos pelos
poderosos e abastados, que podem contratar os melhores advogados. Em
contrapartida, enxerga até demais e é de um rigor extremo com quem não conta
com recursos sequer para se manter, quanto mais para custear a defesa. São
muitos, por exemplo, os casos de pessoas humildes, muitas vezes famintas, punidas com pesadas penas de prisão por causa
de pequenos furtos, como um tubo de desodorante num supermercado, ou uma maçã
em uma quitanda ou um pacote de biscoitos em uma mercearia. O princípio
constitucional da igualdade de todos os cidadãos perante a lei, há muito, está
desmoralizado pela prática.
Li, não me lembro onde, uma
declaração do escritor Autran Dourado, que resume o que a maioria dos
brasileiros pensa do seu país: “Tenho um amigo que gosta de dizer que o Brasil
é um país culposo, pois tudo o que aqui acontece de ruim se deve a uma das três
características de crime culposo: negligência, imperícia e imprudência”. E não
é o que pensamos, infelizmente não sem uma certa dose de razão, do País? Mas
esse sentimento de desconfiança e de desalento não vem de hoje. Já é bastante
antigo. E, de tanto acreditar nisso, a sociedade acaba por, de fato, agir
sempre assim: com negligência, imperícia e imprudência.
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio
Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor
do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico
de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos
livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos),
além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
A reputação parece ser volátil. Alceni Guerra e Ibsen Pinheiro foram dois políticos que também foram linchados e depois ficou comprovado serem inocentes. De fato a mídia tem feito o serviço de julgar e condenar diante de suspeitas, sendo seguido pela opinião pública.
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