Três minutos com Deus
* Por Rodrigo Ramazzini
Era
madrugada do dia 24. Em meio a um sonho, o anjo Gabriel “materializou-se” e anunciou
a mensagem de Deus para Salomão: “Nos encontraremos no próximo dia 27. Terás
três minutos comigo”.
Atônito,
Salomão levantou-se rapidamente e não conseguiu mais dormir naquela noite. A
“realidade” com que o recado fora dado perturbou-o, apesar disso, não comentou
o ocorrido com ninguém. Controlou externamente a ansiedade, porém,
internamente, os pensamentos inquietamente o lembravam da mensagem a todo o
instante. Em um primeiro momento, tentou não acreditar, desconsiderar a
mensagem e creditar tudo a um mero sonho. Mas, à medida que o tempo passava, o
fato ganhava força em suas reflexões e não havia mais como desconsiderar tal recado.
Quando
resolveu acreditar no sonho, inicialmente, interpretou que a mensagem era um
aviso divino que teria apenas mais algumas horas na terra e que dia 27 era o
fim, sendo que teria três minutos com Deus. “Pelo menos já sei que vou para o
céu”, pensou, mantendo o bom humor. Com um papel em branco e um lápis na mão,
começou a fazer uma lista de coisas que deveria fazer antes de morrer. Não
tinha tempo a perder.
Enquanto
fazia a lista, logo, surgiu-lhe outra avaliação. “E se o recado fosse
interpretado como uma convocação para um encontro, em que eu teria a
oportunidade de falar e perguntar tudo que quisesse a Deus, sem ter morrido.
Será isso?”, perguntou-se. Embora essa hipótese também não eliminasse a questão
morte, ela ampliava a perspectiva e trazia a magnitude do que seria o encontro
com Deus em relação a afazeres mundanos que estava planejando. A questão agora
era outra: “o que falar com Deus?”, indagou-se.
Era
necessário considerar que poderia estar vivo ou morto no momento do encontro.
Isso mudaria o ângulo e os caminhos da conversa. Ainda, levar em conta que
talvez nem falasse, mas apenas ouvisse o que Deus tinha a lhe dizer. Era
preciso estar preparado para qualquer situação.
Decidiu
que, primeiramente, a postura que adotaria seria de ouvir e depois falar. “Mas,
o que falar nestes três minutos?”, questionou-se. Pensou em agradecer pela vida
e por tudo de bom que ela havia lhe proporcionado. No entanto, recuou, afinal,
fazia isso com frequência em suas orações e talvez estivesse se repetindo e
perdendo o precioso tempo. Abolida a ideia do agradecimento, Salomão começou a
questionar sobre a própria existência. “Teria eu cumprido a minha missão na
terra? Aliás, temos uma missão na terra? Por que eu estou aqui? Por que
acontece ou aconteceram certos episódios comigo? Como será o meu futuro?”
elaborou as questões.
Quando
estava quase seguro que o caminho seria questionar a própria existência junto a
Deus, outra reflexão cheia de sentimentalismo surgiu-lhe: “não estarei eu sendo
egoísta perguntando apenas sobre mim?”. Era um quesito a avaliar.
“O
homem tem o livre árbitro sobre a vida ou temos um destino estabelecido? Por
que existem as doenças, a dor, a fome, o sofrimento e as guerras? Onde estão as
curas para esses males? Onde está a felicidade? Por que estamos aqui? Para onde
vamos? Existe o céu e o inferno? Por que as coisas são como são? Como se atinge
a perfeição?” foram alguns dos questionamentos que transcorreram eloquentemente
os pensamentos de Salomão até o dia 27.
O
dia marcado nasceu com um exuberante céu azul. Salomão passara a noite
oscilando entre momentos de sono e de insônia. A excitação era grande, porém,
ao mesmo tempo, tinha um sentimento de paz interior. Como não sabia onde e em
que horário seria o encontro, resolveu seguir a agenda de atividades que planejara
com afinco nos últimos dias. “Belo dia para o fim. Ou não?”, pensou e abriu um
pequeno sorriso.
Caminhando
pelas ruas da cidade uma nova inquietação lhe ocorreu. “Se hoje realmente for o
meu último dia na terra, será que vivi a vida que queria? Fiz tudo que queria?”.
Sentou-se em um bar para tomar uma cerveja e pensar no assunto. “O saber da
cronologia da vida provoca invariavelmente uma reflexão sobre o passado.
Talvez, eis o motivo de não sabermos quando vamos morrer, para que assim,
façamos essa análise sobre a própria existência todos os dias”, refletiu. Logo
após o pensamento, deu-se conta que, a bem da verdade, ele sabia quando seria o
seu fim.
Enquanto
bebericava o líquido gelado e filosofava sobre a vida, uma vontade súbita de
sair conversando com as pessoas pelas avenidas da cidade lhe ocorreu. Rasgou o
papel que tinha anotado as atividades programadas e com um sorriso no rosto, tomou
o último gole de cerveja e partiu sem rumo.
Trocou
ideias sobre todos os assuntos e em vários lugares com vendedores, lixeiros,
ambulantes, aposentados, crianças, pessoas felizes, pessoas deprimidas, pessoas
doentes, com dinheiro, sem dinheiro, enfim, um mar de gente que até perdeu a
conta ao final do dia. Já em casa, enquanto tomava um banho de banheira, Salomão
refletia sobre o aprendizado e as inquietações sobre as perspectivas e o modo
de ver e encarar a vida que surgiram depois de todas aquelas conversas. Três
lições foram aprendidas e redigidas em um papel. “A felicidade está no peso que
damos para os fatos. Os dias são feitos de coisas boas e ruins. É quase uma
regra. Devemos maximizar as boas e minimizar os contratempos, que muitas vezes
não passam de pequenos obstáculos ou golpes do destino. O problema é que o ser
humano tem a tendência natural de enfatizar e valorizar o negativo”, pensou.
Ainda,
chegou à conclusão de que todas as pessoas têm uma missão na terra e que nada
acontece por acaso, mesmo que, em um primeiro momento, não faça sentido. O
tempo fará a ligação entre os fatos. A história das pessoas lhe mostrou isso.
Compreendeu que há os que estão por aqui para fazer os outros sorrirem, para
emocionar, fazer pensar, ajudar o semelhante, gerar outros seres, enfim, uma
infinidade de missões, inclusive, aqueles que causam sofrimentos alheios. Notou
que o ser humano realmente parece estar um escala evolutiva. Lembrou-se do
livro a Divina Comédia, de Dante Alighieri, com seus estágios: inferno, purgatório
e paraíso. Salomão ficou a se perguntar qual era a sua missão neste plano
terrestre e se a havia cumprido.
Por
fim, as conversas lhe deixaram como legado uma lição sobre Deus e a fé. “Deus
não se resume a ser um supremo, que está no céu e tudo pode. Deus está dentro
de nós e cada um de nós somos deuses. Por isso, está na Bíblia que Deus criou o
homem a sua imagem e semelhança. Sendo assim, não adianta, por exemplo, ir diariamente
a uma igreja e orar, orar e orar, mas minutos depois sair destratando as
pessoas, pois, de tal modo, estaremos destratando ao próprio Deus”, concluiu.
Ao
sair do banho, Salomão olhou a hora no relógio da parede da sala. Era 23h21mim.
“O encontro de três minutos com Deus não passou de mero sonho”, raciocinou. Foi
dormir e devido ao cansaço, logo pegou no sono. Às 00h01mim do dia 28, Salomão
morreu enquanto dormia.
Os
olhos demoraram um pouco para se adaptar a luminosidade do lugar e uma leve
vertigem o dominou por alguns segundos. Um homem o acudia com uma presteza
celestial. Tomou um pouco de água e respirou fundo. Os sentidos foram retomando.
Com um sorriso no rosto, São Pedro lhe deu as boas-vindas. “Aqui é o céu”,
pensou. Estava deitado no chão, embaixo de uma árvore. Uma voz com um tom
impressionante de afetuosidade, como se tivesse lido os seus pensamentos,
respondeu:
-
Sim! Aqui é o céu, meu filho!
Salomão
rapidamente levantou-se e então percebeu quem era o dono da voz. Tinha-o
imaginado muito diferente. Deus estava sentando em um banquinho. Vestia uma
simples roupa branca e comia tranquilamente uma maçã.
-
Tinha me imaginado diferente, correto?, indagou Deus.
-
É..., resumiu-se a responder Salomão.
-
Eu sei, meu filho! Como todos. Mas, não tem problema. Sente-se!, replicou
carinhosamente Deus.
Em
silêncio, Salomão sentou-se no chão em frente a Deus que, terminou de comer a
fruta e, cuidadosamente, virou uma ampulheta e retomou o diálogo:
-
Terás três minutos comigo... Recebeste o recado de Gabriel?
-
Recebi, sim senhor! Só que...
-
Fale?
-
Se o senhor me permite perguntar... Mas o nosso encontro não estava marcado
para ontem?
-
Estava...
-
Então, ganhei um dia a mais?
-
O homem foi feito a minha imagem e semelhança...
-
Hum... Sei... Sei... Aliás, já sei! Vamos ver se entendi... Então, no momento
que, por exemplo, converso com alguém, de alguma forma, estou conversando com o
senhor. Isso vale para todas as ações. A minha reflexão no meu último dia de
vida estava correta?
-
Exatamente, Salomão! Conversamos o dia todo ontem... O recado de Gabriel foi
apenas para lhe fazer refletir sobre a vida...
-
Certo... Compreendo perfeitamente... Falando nela... E o meu pensamento sobre a
vida?
-
Perfeito! Sem tirar nem pôr qualquer outra palavra... Como as pessoas
refletiriam e evoluiriam em sua existência se só acontecessem coisas boas? A
felicidade está no peso que damos aos fatos, como bem escreveste...
-
Então, senhor, isso quer dizer que...
-
Isso quer dizer que realmente todos que estão na vida terrena têm uma missão.
-
Eu sabia, Deus! Eu sabia...
-
Tiveste uma grande vida evolutiva, Salomão! Tudo que aconteceu contigo e as
situações que vivenciastes foram para lhe auxiliar de alguma forma no
cumprimento da tua missão na terra...
-
Isso quer dizer que cumpri a minha missão, senhor?
-
Cumpriu com perfeição!
-
Ufa! Bom saber disso...
-
Não vais me perguntar qual era?
-
Lógico, senhor! Qual era?
-
A sua missão Salomão era levar um recado meu sobre a vida para a humanidade...
-
Como assim?
-
O papel que escreveste com as três lições será encontrado junto ao seu corpo e seus
escritos rodarão o mundo. Mas, infelizmente, poucos os compreenderão e os
levarão a sério...
-
Agora, compreendo tudo, senhor! Tudo claramente faz sentido... Fui uma espécie
de enviado?
-
Espécie, não. Foste meu enviado, meu filho!
-
Entendi!
-
Salomão, seu tempo está acabando e a fila é longa... Alguma coisa mais, meu
filho?
-
Senhor, uma última pergunta: morri porque cumpri a minha missão?
-
Não, Salomão!
-
Não? Desculpa, mas como não, senhor?
-
Morreste porque com as lições passaste a compreender a vida e não havia mais o
que evoluir no plano terrestre.
-
E isso significa?
-
Significa que aqui será a sua nova casa definitiva. Ao meu lado. Seja bem-vindo
ao céu, Salomão!
* Jornalista e contista gaúcho
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