Devaneios, não ideais
As
pessoas, em geral, confundem ideais com simples devaneios. Os
primeiros são claros, definidos, objetivos e não contêm a mínima
ambiguidade. Os segundos são obscuros, genéricos, vagos e sumamente
ambíguos.
Afirmar
que se deseja “ser útil” pode ser manifestação de boa
intenção, não duvido. Mas essa utilidade pode ser dar de várias
formas. Portanto, a afirmação não passa de mero devaneio. O mesmo
vale quando nos referimos à humanidade. Generalizamos a questão,
sem especificá-la.
Outro
conceito genérico, amiúde utilizado pelos pseudo idealistas, é o
que se refere ao “próximo”. Quem é ele? Qual seu grau de
proximidade? Próximo de quem, de mim ou de meus parentes e amigos?
Devaneios, meros devaneios.
O
verdadeiro idealista, não raro, sequer sabe que o é. Não se limita
a meras elucubrações e à retórica bombástica, mas via de regra
despida de conteúdo. Em vez de falar e de apregoar aos quatro ventos
os méritos próprios, ou seus pseudo sonhos, ou supostos planos,
opta por agir: socorre, instrui, orienta, corrige, constrói... E, na
maioria das vezes, sequer fica sabendo o resultado da sua atuação.
Ademais, isso pouco lhe importa.
Idealista,
sem dúvida, foi São Francisco de Assis em sua opção de
valorização e defesa da vida, sendo humilde com os humildes,
assumindo uma pobreza que não precisava, comungando a tal ponto com
a natureza que chegava a entender os animais, os pássaros, as
borboletas e os insetos, com os quais dialogava.
Outro,
que sacrificou fortuna, fama, posição social etc. foi Albert
Schweitzer. Médico, filósofo, teólogo e músico (é considerado,
até hoje, um dos melhores, se não o melhor intérprete das
composições de Johann Sebastian Bach), no auge do prestígio,
abandonou tudo para se embrenhar nas selvas do Gabão, na África,
para tratar de pessoas que não dispunham das mínimas condições de
acesso a tratamento médico.
Iniciou
sua missão – que ninguém lhe impôs – em condições
precaríssimas. Seu primeiro “consultório” foi um galinheiro
adaptado. Enfrentou obstáculos que desanimariam o mais determinado
dos idealistas, como clima hostil, falta de higiene, carência de
medicamentos e de instrumentos cirúrgicos, idioma estranho que lhe
era, de início, completamente incompreensível etc.etc.etc. Tratava,
em média, 40 doentes por dia e fez isso não por semanas ou meses,
mas por anos e décadas, dormindo pouco, se alimentando mal e sem
receber o mínimo níquel de quem quer que fosse por seu trabalho. A
despeito de tudo e de todos, perseverou. E venceu.
Schweitzer
encantou e extasiou o mundo com sua perseverança, bondade e
dedicação. Em 1952, conquistou o Prêmio Nobel da Paz, o mais justo
de todos já atribuídos desde a instituição dessa premiação. E,
claro, reverteu a totalidade do que recebeu na construção de um
moderno hospital em Lambarené, além da contratação dos melhores
médicos e enfermeiras que havia na Europa e no aparelhamento do
mesmo.
Idealistas
foram Mohandas Karamanchand Gandhi, o poeta Rabindranath Tagore,
Madre Teresa de Calcutá, Martin Luther King e tantos outros. Muitos
desses indivíduos obcecados pelo bem continuam agindo, injustiçados,
espalhados pelo mundo afora, sem que as pessoas que não sejam do seu
círculo sequer saibam que existem. Pouco lhes importa.
Muitas
vezes nos deparamos com tarefas aparentemente impossíveis de serem
realizadas, por se constituírem, supostamente, em desafios
superiores às nossas forças, nossos conhecimentos e nossa
capacidade mental.
A
maioria... claro, desiste da empreitada, sem sequer fazer a mínima
tentativa. Perde, desta forma, não raro, oportunidades únicas para
evoluir e conquistar o respeito e a admiração gerais quando não os
próprios. Estes não podem, jamais, posar de idealistas. Todavia,
alguns têm a suprema cara de pau de apregoar que o são. Têm
devaneios, não ideais.
Muitos
indivíduos, todavia, ousam tentar realizar o aparentemente
irrealizável. E surpreendem-se com as próprias forças, com aquela
reserva de energia que todos temos, mas que a maior parte das pessoas
sequer desconfia que tenha. A ousadia acaba premiada. Esses, sim, são
idealistas.
Não
se deve desistir, a priori, de nada. Se nosso esforço redundar em
fracasso, a tentativa sempre terá valido a pena. Se for
bem-sucedido... A escritora Pearl Buck constatou, a respeito: “Até
prova em contrário, todas as coisas são possíveis – e mesmo o
impossível talvez o seja apenas nesse momento”.
Mas
o ideal precisa ser legítimo, claro, objetivo e definido. Caso
contrário... O escritor italiano, Giovanni Arpino, fez uma deliciosa
constatação a respeito, no livro “A escuridão e o Mel”
(Editora Berlendis & Vertechio”). Escreveu: “Ser útil.
Humanidade. O próximo. Devaneios de solteirona. Se fosse assim,
melhor seria ser cura, no campo. Mas um cura típico, com a barriga,
a chácara, o sótão cheio de salames e assim por diante”.
Porquanto, convenhamos, ideal está longe de ser algo tão genérico,
obscuro, oco e vago.
Boa
leitura!
O
Editor.
Eu conheço alguns idealistas. Eu não sou. Até evito sonhar.
ResponderExcluir