domingo, 25 de março de 2018

Sorvendo os ânimos - Laís de Castro


Sorvendo os ânimos

* Por Laís de Castro

Ninguém sabe o que é desvio de estrada-de-ferro. Desvio é aquela linha auxiliar que as ferrovias têm em todas as estações, onde alguns vagões, ou muitos, ou o trem inteiro fica esperando a hora de seguir o seu destino. Uns ficam vazios como a minha cabeça neste momento, outros com mercadorias não perecíveis como a sua cabeça neste momento, uns ficam com meia carga, esperando lotar para seguir em frente. E às vezes demora, muita gente fica no desvio boa parte do tempo que lhes é dado neste mundo. Vagões, como pessoas, só seguem viagem quando estão com sua carga máxima. Fica aquela meia carga picotando a vida, como o guarda-trem picota o bilhete para mostrar que foi usado, não vale mais nada, até gente jogar tudo para cima e ir em frente com a carga pela metade mesmo. Meia-bomba.

De repente, você está num trem indo para um lado e cruza com outro voltando e quantas pessoas podem estar naquele que poderiam ser suas amigas, companheiras, maridos, mulheres, gurus, guardiões, assassinos, algozes. Pode pintar, no cruzamento, um desencontro, desandando sua vida como maionese, espalhando laivos de pavor, mágoa e desatino. Ninguém mais terá licença, pronto, para pensar coisas simples sem machucar-se ou deprimir-se em guerras estelares, porque os trens se cruzaram, separando quem deveria estar unido, destruindo as intenções interpessoais de amor, de paz e de guerra, de nascente e nascimento. De poente, na praia, a dois, a dor da separação, do desaparto.

A indiferença e a paixão se desencontraram. Funciona assim: uma das chaves que comanda os trilhos envia a um desvio onde o trem deve encostar, parar, estancar, deixar de buscar seu destino e a outra chave envia à linha-mãe, de onde ele parte para o definitivo, lotação esgotada de sentimentos. Deslizando em suas bases de aço, quase sem atrito, a sensibilidade se deixa levar para longe e onde quer que seja, vai se apresentar escudada em centenas de anos de experiência das emoções humanas, que se repetem. Melhores, ou piores, estarão em cada cabeça e em cada consciência, sem preconceito de cor, de idade, de sexo, religião ou qualquer outra diferença externa que os olhos enxerguem, mas o coração não. Estarão em cada farol verde que dá passagem ao trem, com sua respiração ofegante, eu te cutuco, num cutuca, eu te cutuco, num cutuca, eu te cutuco, num cutuca. O trem não escolhe passageiros assim como o coração não escolhe, cerra os olhos antes de atirar a flecha de cupido que sangra caçador e vítima.

Quem sabe a paixão possa se abrir como um Sésamo, mostrando todo o seu interior ou talvez se mantenha fechada como um cofre, apenas porque tem licença dos deuses incógnitos para envolver você e o outro no casulo, ou prender na teia de aranha, sufocar como uma asma fulminante, roubar espaço que seria do oxigênio e preenchê-lo com taças mórbidas de curare e vinho tinto. Depende de sua capacidade de fixação, eu sou bacana, nada me atinge, conversa mole, fiada. Em dezenas de gêneros de pressentimentos e comoções, desde aqueles que estacionam num desvio até os que voam baixo, sobre um colchão de ar, comoções modernas embarcadas numa estação inicial recusando-se a parar antes de atingir seu fim. Ruim ou bom. Uma mordida de um cão furioso num dia, um afago de um gato manhoso no outro.

Notícia de rádio: “Os trens estão a 30 segundos de uma colisão frontal e ninguém poderá evitar o desastre”.

A escassez remete ao pensamento delirante. Um só peito pode conter milhares de fórmulas de encontros e sabores, do ácido ao doce, do amargor da crueldade ou do sorvedouro de ânimos humanos. Como num trem. No início da viagem há uma permanente esperança da chegada, mas depois de um milhão de quilômetros percorridos, o cabelo do guarda-trem mais branco, as roupas puídas e amarrotadas, os vagões desbotados pelo sol, o olhar mais brando, o cardápio retornado do carro-restaurante, a releitura da mesma velha revista, a rotina da viagem e da vida parecem murchar, como a flor que se enterra com o corpo morto.

Na essência, toda decolagem anseia um pouso, toda partida uma chegada, todo começo um fim, toda ação desentoca uma reação, como a raposa desentoca o coelho. Um círculo vicioso vale o mesmo que um olhar distante, quando a noite chega, qualquer delírio pode entrar em órbita. Da semente lançada ao espaço, nascem milhares de azuis, verdes e dourados. Qualquer semelhança nunca é mera coincidência, se o desvio de rota não for suficientemente explicado. Qualquer data pode traduzir o ódio perpassado numa morte inútil e na triste verdade, que sempre vêm à tona, feito azeite em água.

Onde quer que seu trem tenha parado, para onde quer que ele voe em velocidade vertiginosa, hoje, você não vai receber nenhuma mensagem, não vai sentir nenhum arrepio e nem ter qualquer premonição. Onde quer que você esteja, não será encontrado.

Um leilão de lástimas pode ser efetivo caso a vida não tenha mais sentido e um telefonema ganhe o direito de desligar o último ser humano de seu último interlocutor.

A colisão dos trens acontece neste exato momento.

* Jornalista, trabalhou no grupo Abril, na Editora Três (sob Luís Carta), na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e, agora, é da Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.


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