Grandioso poeta condoreiro
À
simples menção do nome Castro Alves, aqueles que não leram seus
livros e só tomaram conhecimento da sua obra através de antologias
ou de pequenos textos dos cursinhos de vestibular, torcem o nariz,
como que diante de uma velharia, indigna de ser apreciada. A geração
do pós-tudo – pós-guerra, pós-moderna, pós-ultramoderna, e vai
por aí afora – arranja dezenas de pretextos para ignorar sua
poesia esmerada, combativa, discursiva, retórica que certamente não
leu e não gostou.
Estes
dois últimos qualificativos (discursiva e retórica) geralmente são
citados por críticos literários como pejorativos. Não entendo
assim. O discurso bem conformado e inteligente é a maior arma de
convencimento que o intelectual conta. E a arte da retórica – ou
seja, do repto, do desafio, do confronto de ideias – quando
exercida com competência e equilíbrio, empresta brilho especial ao
texto e consolida qualquer argumento verdadeiro.
Os
historiadores de Literatura classificam Castro Alves como romântico.
A palavra sugere versos melosos, desmilinguidos, até piegas. Foi um
preconceito que se criou em torno dessa tendência literária,
ditado, evidentemente, pelo desconhecimento, pela falta de gosto,
pela ignorância explícita.
Esse
rótulo basta aos que exercem o hábito da leitura (e quando o
fazem), sem uma visão crítica, e que se apegam apenas a modismos,
como se estes fossem os determinantes culturais. Aliás, o saudável
hábito de ler nem sempre é devidamente exercitado nestes tempos de
predomínio do visual, a não ser por uma diminuta e arrogante elite,
financeira, mas nem sempre intelectual.
Aos
que torcem o nariz à obra do poeta baiano, embora sem conhecer já
não digo suas nuanças, mas os versos mais populares e conhecidos
que ele escreveu (constantes em qualquer antologia, por mais
ordinária que seja) somente por causa do seu romantismo, retruco com
uma citação de Fernando Pessoa.
Escreveu
o escritor português dos heterônimos: "Os realistas realizam
pequenas coisas, os românticos, grandes. Um homem deve ser realista
para ser gerente de uma fábrica de tachas. Para gerir o mundo deve
ser romântico. É preciso ser realista para descobrir a realidade; é
preciso um romântico para criá-la".
E
Castro Alves criou-a. Comandou a campanha pela abolição dessa
vergonha que mancha a nossa história, que foi a escravatura.
Participou ativamente da luta abolicionista e pressentiu um futuro
grandioso para a jovem e emergente América Latina. Defendeu a
difusão e popularização do livro e, portanto, da educação, como
instrumento para transformar o Brasil em uma sociedade justa e
humana, quando esclarecida.
A
grande causa da sua vida, Cecéu – este era o apelido que o irmão
mais velho, José Antônio, lhe deu – assumiu aos 16 anos de idade.
Isso mesmo, ainda menino. Foi no Recife. Em 17 de maio de 1863, mais
precisamente, quando publicou no jornalzinho "A Primavera"
seus primeiros versos abolicionistas:
"Lá
na úmida senzala/sentado na estreita sala,
junto
ao braseiro no chão,
entoa
o escravo seu canto
e
ao cantar correm-lhe em pranto
saudades
do seu torrão…"
É
poesia de gente grande. Ficava claro que o menino era um fenômeno.
Defender o abolicionismo hoje não apresenta dificuldade para
ninguém.
É
fácil revoltar-se com o horror, com a covardia, com a suprema
crueldade de reduzir um ser humano à absoluta animalidade. De
tirar-lhe os bens mais preciosos: a liberdade e a dignidade. Mas na
época, a escravidão era um procedimento normal. Pessoas reputadas
por sua benemerência tinham senzalas repletas de negros, tratados
como bois, cavalos ou cães de guarda. Ou até menos.
Os
proprietários de escravos contavam com o beneplácito da lei. Não
se tratava de nenhuma ilegalidade explorar um ser humano à exaustão
e até à morte. Os escravizados não eram considerados pessoas. Eram
comprados e vendidos e o Estado recolhia impostos sobre estas
transações. Os que se opunham a essa atividade asquerosa eram tidos
por agitadores. Muitos deles eram presos, por perturbação da ordem
pública. E tudo isso ocorreu há pouco menos de duzentos anos!
O
País teve inúmeros abolicionistas ilustres, que a história
registra, políticos, escritores, sacerdotes, tribunos, advogados.
Todos maduros, assentados na vida e, sobretudo, experientes. Mas
ninguém ergueu mais alto e mais firme a sua voz do que aquele menino
baiano, rebelde, idealista e sumamente talentoso.
Notem
que libelo acusatório contundente, marcante, firme e honesto são
estes trechos, pinçados a esmo, do poema "O Navio Negreiro":
"Quem
são estes desgraçados
que
não encontram em vós
mais
que o rir calmo da turba
que
excita a fúria do algoz?
Quem
são?
Se
a estrela se cala,
se
a vaga à pressa resvala
como
um cúmplice fugaz
perante
a noite confusa...?
Diz-me
tu, severa Musa,
Musa
libérrima, audaz…
São
os filhos do deserto, onde a terra esposa a luz,
onde
vive em campo aberto
a
tribo dos homens nus…
São
os guerreiros ousados
que
com os tigres mosqueados
combatem
na solidão,
ontem,
simples, fortes, bravos…
Hoje,
míseros escravos,
sem
ar, sem luz, sem razão..."
Sintam
a revolta, a santa ira, desse menino, desse adolescente, como nossos
filhos ou netos de hoje, e com o ideal da liberdade, igualdade e
fraternidade a queimar-lhe as entranhas:
"Senhor
Deus dos desgraçados!
Dizei-me
vós Senhor Deus,
se
eu deliro...ou se é verdade
tanto
horror perante os céus!…
Ó
mar, por que não apagas
co'a
esponja de tuas vagas
do
teu manto este borrão?
Astros!
noites! Tempestades!
rolai
das imensidades!
Varrei
os mares, tufão..."
O
poeta investia contra o tráfico de escravos. Contra o apresamento de
homens livres em sua terra natal para um destino pior do que a morte,
em longínquas paragens, despidos de sua mínima dignidade. Sua
revolta maior era contra o Poder Público que não somente fazia
vistas grossas a esse vil comércio, mas participava dele.
Diz
o poeta, em determinados versos do poema "O Navio Negreiro":
"Existe
um povo que a bandeira empresta
pra
cobrir tanta infâmia e covardia!…
E
deixa-a transformar-se nessa festa
em
manto impuro da bacante fria!
Meu
Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
que
imprudente na gávea tripudia?"
E
arremata com estes versos, provavelmente os mais fortes, magistrais,
contundentes e autênticos de toda a literatura brasileira:
"Auriverde
pendão da minha terra,
que
a brisa do Brasil beija e balança,
estandarte
que à luz do sol encerra
as
promessas divinas da esperança…
Tu
que, da liberdade após a guerra,
foste
hasteado dos heróis na lança,
antes
te houvessem roto na batalha,
que
servires a um povo de mortalha!…"
É
antiga esta poética? Pode ser para aqueles invertebrados que vegetam
no mundo sem saber sequer a razão. Para os que fazem do estúpido e
vazio hedonismo, do materialismo frio e insensato, da busca frenética
por bens que não poderão levar para o túmulo, seu único e
exclusivo objetivo. Castro Alves é, e deveria ser hoje e sempre, o
poeta da juventude brasileira. O arauto da liberdade e da justiça
social. O utópico anunciador de novos tempos. O grandioso poeta
condoreiro.
É
um intelectual – e digo no presente, já que seu espírito
permanece vivo entre nós, através da sua marcante obra – para ser
reverenciado, estudado, imitado e seguido. É um talento desses
raros, que aparecem apenas de quando em quando, nos diversos campos
da atividade humana. Daí ser patrono da Academia Brasileira de
Letras, fundada muitos anos após sua prematura morte, aos 24 anos de
idade, em 1871.
Os
derradeiros anos da sua curta vida foram tormentosos, duros,
difíceis. Tiveram a morte a fazer uma trágica ronda ao seu redor.
Em 9 de fevereiro de 1864, por exemplo, foi duramente abalado com o
suicídio do irmão mais velho, José Antônio, aquele que lhe deu o
apelido de Cecéu.
Nesse
mesmo ano, já cursando direito no Recife, em 7 de outubro, tem uma
crise de tuberculose. Entre medo e esperança, escreve estes versos:
"Oh!
Eu quero viver, beber perfumes
na
flor silvestre que embalsama os ares;
ver
minh'alma adejar pelo infinito,
qual
branca vela n'amplidão dos mares".
Contudo,
pressente a presença da morte, nestes dois últimos versos:
"Mas
uma voz responde-me sombria:
terás
o sono sobre a lájea fria".
O
poeta queria viver. Amava a vida. Era sacerdote da beleza. Apreciava
a juventude. Era arauto da esperança. Vivia embriagado de ideal.
Tanto, que este extravasava para seus versos. Sabia que liberdade,
igualdade e fraternidade eram utopias. Ainda assim... fazia desses
conceitos seu lema.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
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