Uma
toada para Marielle, a flor que fura o asfalto
*
Por José Ribamar Bessa Freire
Tentaram
nos enterrar, mas não sabiam que éramos semente (Provérbio
mexicano).
Tonadas
de Manuel Rodriguez,
escrita por Pablo Neruda e musicada depois por Vicente Bianchi,
martela na minha cabeça nesta quinta-feira (15), no caminho para a
manifestação contra o assassinato da vereadora Marielle Franco
(PSOL) e do motorista Anderson Pedro. As vozes do Coral Sinfônico da
Universidade do Chile ecoam dentro de mim, cantando a epopeia do
político e guerrilheiro Manuel Rodriguez executado pelos militares
espanhóis, em 1818, quando lutava pela independência do Chile:
-
Ele era nosso sangue/nossa alegria/os assassinos o mataram/sua costa
está sangrando/ pelo caminho – chora Neruda, que pede que "as
guitarras se calem, a pátria está enlutada, nossa terra se
escurece". Violeta Parra também fez sua homenagem, mas atualiza
Manuel Rodriguez, trazendo-o para o seu tempo, com a música: Hace
falta un guerrillero.
A heroicidade do personagem é manifestada através da sua vontade
declarada de ter um filho batizado com este nome, na esperança de
que “ele já vai nascer com uma espada na mão e o coração de
Manuel”.
Um
poema puxa o outro. O luto por Marielle me conduz da toada chilena
para A
flor e a náusea de
Carlos Drummond, cada dia mais atual, nos lembrando que “o tempo
não chegou de completa justiça. O tempo é ainda de fezes, maus
poemas, alucinações e espera”. Ele pergunta: “Posso, sem armas,
revoltar-me?”. O inimigo está com a faca, o queijo, os fuzis e as
balas na mão, o que aumenta nosso sentimento de impotência.
Na
hora da desesperança, quando a gente se sente esmagado e derrotado
pela barbárie, a poesia e a música são um refúgio legítimo para
recuperar a humanidade perdida. Drummond me mostra a flor furando “o
asfalto, o tédio, o nojo e o ódio” e, dessa forma, “me salvo e
dou aos poucos uma esperança mínima”. A poesia e a música,
territórios onde os assassinos não entram, tem esse poder milagroso
de colocar ao nosso alcance a arma da razão com muita munição de
esperança. Manuel Rodriguez
morre, mas seu sangue aduba o solo do Chile libertário. E Marielle?
Meio
século depois
Vinte
mil flores furaram o asfalto no Rio de Janeiro e outras milhares
brotaram em cidades do Brasil e do exterior: Lisboa, Paris, Londres,
Madri, Nova Iorque e mundo afora. O sangue derramado por Marielle e
Anderson, atingidos por balas federais pagas por nós, contribuintes,
adubam a luta por justiça social. Não fosse assim, os criminosos
venceriam. Mas a luta continua, a flor fura o asfalto, o nojo e
o ódio dos discursos que proliferam na rede vomitando estupidez.
Março
de 2018, lá estava eu, com minha filha a tiracolo, no mesmo local
onde estive em março de 1968, na Cinelândia, em frente às
escadarias da atual Câmara de Vereadores, que na época abrigava a
Assembleia Legislativa. Lá, há meio século, o caixão do
estudante Edson Luís foi velado à noite toda e, na manhã seguinte,
uma multidão já tomava desde cedo a Cinelândia para protestar
contra a ditadura e contra a polícia comandada pelo então
governador Negrão de Lima (MDB vixe vixe).
É
inevitável a lembrança do velório e do enterro de Edson Luís, de
18 anos, assassinado em março de 1968 por policiais militares,
nenhum deles punido.
Agora, meio século depois, caminhando da Cinelândia para a Rua
Primeiro de Março, lembrei as palavras de ordem que a gente gritava
para as pessoas que nos contemplavam das calçadas e das janelas dos
edifícios no trajeto para o Cemitério São João Batista, em
Botafogo, levando o caixão de Edson Luís:
-
Você que é explorado, não fique aí parado.
Embora
os manifestantes comovidos pelo assassinato de Marielle tenham se
multiplicado rapidamente, tem ainda muita gente inerte e apática na
sociedade brasileira. Encontrei algumas pessoas da minha geração
que participaram dos dois eventos. Com eles lembramos o discurso do
jornalista Otto Maria Carpeaux para a multidão na
Cinelândia em 1968, que reflete as dificuldades de realizar nosso
sonho.
O
pirão repartido
Era
ainda na parte da manhã. O enterro de Edson Luís estava marcado
para as 16 horas e até lá os oradores se sucediam nas escadarias da
Assembleia. Carpeaux, com dificuldades na fala, se inscreve. Ele
talvez fosse naquele momento, com Antônio Callado, a voz mais
crítica e lúcida do jornalismo brasileiro. Recebe o microfone das
mãos de Elinor Brito, da FUEC – Frente Unida dos Estudantes do
Calabouço e faz uma proposta que não foi aceita, de antecipar o
enterro:
-
Passamos antes pela Avenida Presidente Wilson e tocamos fogo no
Consulado Americano. Depois, no caminho a Botafogo, na Rua Pinheiro
Machado incendiamos o Palácio Guanabara.
Os
meus colegas de faculdade, que sabiam da admiração que eu nutria
por Carpeaux, me cobraram:
-
O cara está doido.
Nem
o mais radical dos estudantes concordava com a proposta politicamente
disparatada, que se diluiu entre tantos discursos. Mas naquele
momento e agora mais que nunca, entendi Carpeaux, cuja reconhecida e
permanente lucidez foi obscurecida em alguns instantes pelo
desespero. Na época, ele tinha a idade que tenho hoje. Suspeito que estava
com medo de morrer sem ver um Brasil justo, democrático, com o pirão
repartido. Ao ver a multidão, pensou que aquela era a hora de uma
convulsão social.
Essa
é a sensação da minha geração, cujos sonhos são abalados quando
uma lutadora social, uma vereadora com quase 50 mil votos, tem
cassado o seu mandato e ceifada sua vida. Todos nós morremos um
pouco com ela que, no entanto, nos deixa a semente da luta.
Não
se trata de uma bala perdida, de mais uma morte, como comentou o
general Villas Boas, tentando despolitizar o fato e banalizar o
crime. O que ocorreu foi um atentado terrorista planejado e cometido
um mês depois da intervenção militar no Rio de Janeiro, com
munição desviada da Polícia Federal. Isso tudo nas barbas de quem
justificou que o objetivo da intervenção era dar mais segurança à
população. As autoridades constituídas, ministros e até o
presidente da República, que tem impedido a investigação de
corrupção, juram sobre a Bíblia que farão “uma investigação
rigorosa” para encontrar os executores e os mandantes deste
atentado contra as instituições democráticas. Se não derem uma
resposta rápida, fica evidente que é puro lero-lero para desviar a
atenção da opinião pública.
É
assustadora a leitura dos acontecimentos por alguns setores que usam
as redes sociais para assumir os disparos como seus. Contra a
indigência intelectual e moral, contra o déficit civilizatório,
vamos à concentração na Candelária na
terça-feira, dia 20, às 17 hrs, seguida de marcha para a
Cinelândia. Exatamente no mesmo cenário e no mesmo percurso da
missa de sétimo dia de Edson Luís, semente, como Marielle, de
tantas flores que furam o asfalto.
P,S.
1 - Mensagem repassada pelo desembargador Sérgio Verani, ex-diretor
da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ):
"Avisem
a quem mandar áudios de Whatsapp ou posts com calúnias contra
Marielle que há uma grande equipe jurídica voluntária rastreando
tudo e que quem compartilhar esse lixo será devidamente
processado. Ela não será difamada. Não permitiremos.
Complementa o chamado com as seguintes informações: precisamos dos prints e dos links dos posts. Precisamos de fazer ata notarial em casos mais graves, antes que a pessoa apague o post
Mandem
para o e-mail evelyn@ejsadvogadas.com.br
*
Jornalista e historiador.
Eles passarão. Marielle ficará.
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