quarta-feira, 21 de março de 2018

Editorial - Homem de ação


Homem de ação


A ideia que geralmente fazemos de um intelectual é a do sujeito discreto, que foge dos refletores da opinião pública e das badalações dos basbaques, que despende a maior parte do seu tempo lendo, refletindo, escrevendo, produzindo e difundindo ideias. Esse estereótipo, no entanto, nem sempre condiz com a realidade.

Nada impede que o sujeito de intelecto privilegiado seja, simultaneamente, homem de ação. É, aliás, o que foi o espanhol, de alma francesa, Jorge Semprun, escritor, intelectual de renome e de grande prestígio, político e cineasta, que faleceu no dia 7 de junho de 2011, em Paris, aos 87 anos (faria 88 em 10 de dezembro).

Trata-se de um guerreiro na acepção do termo. Exilado na França, ocupada pelos nazistas, desde 1941, onde estudou Filosofia na tradicional Universidade de Sorbonne, pegou em armas, durante a Segunda Guerra Mundial, combatendo os invasores como integrante da resistência francesa. Por sua militância comunista, foi denunciado, preso, torturado e enviado ao campo de concentração de Buchenwald. Foi, como se pode deduzir, uma experiência terrível, da qual, com muita sorte, conseguiu sair com vida. Milhões não conseguiram.

Tudo o que viu, ouviu e, enfim, testemunhou nesse período de triste memória, marcou, como seria de se esperar, sua vida. Mas a amarga e dolorosa experiência também determinou os rumos da sua literatura (engajada) e, principalmente, da sua atuação política. Sua coragem e militância na causa da liberdade fizeram com que fosse aclamado como herói na França, país em que se estabeleceu.

Embora nunca tenha deixado de sentir-se espanhol, tinha, pode-se dizer, “alma francesa”. Amava a língua, as artes, as tradições e a cultura do país que o abrigou e que defendeu, com o risco da vida, de armas em punho. Como se vê, Jorge Semprun não satisfaz nem um pouco o estereótipo do intelectual, que sempre foi, e legítimo.

Outro ponto que o diferencia dessa ideia genérica (e nem sempre correta) de homem de pensamento, é o fato de sempre haver tido ativíssima militância política. Mesmo residindo na França, foi alto membro do Partido Comunista Espanhol, proscrito durante a longa ditadura de Francisco Franco na Espanha, chegando a integrar o Comitê Central do PCE e, em seguida, o Comitê Executivo.

Logo após o fim da ditadura franquista, com a redemocratização de sua terra natal, regressou a ela, para participar do governo do socialista Felipe Gonzalez. Foi convidado, e aceitou ser ministro da Cultura da Espanha, função que exerceu entre 1988 e 1991. Embora atuando, tão intensamente, na política, Jorge Semprun nunca se descuidou das atividades artísticas e intelectuais. Por exemplo, escreveu, e publicou, 17 livros, de vários gêneros.

Além da literatura, engajou-se ao cinema, onde participou de 14 filmes, entre os quais alguns bastante famosos e muito conhecidos do público, como “Z”, dirigido por Costa Gavras, “A guerra terminou”, de Alain Resnais e a série de televisão “O caso Dreyfus”, que contou com a direção de Yves Boisset. Conquistou inúmeros prêmios, notadamente literários, o que atesta seu indiscutível e inquestionável talento de escritor.

Dominava, como poucos, dois idiomas: o castelhano, de sua terra natal, e o francês, da sua segunda pátria. E aí está uma particularidade que me chamou muito a atenção ao pesquisar sua trajetória. Por se tratar de escritor espanhol, é lícito de se presumir que escrevesse seus livros no belo idioma de Cervantes, claro, o dos seus pais. Todavia, não foi o que aconteceu. Dos dezessete livros que publicou, somente dois foram escritos em castelhano: “Autobiografia de Federico Sanchez” e “Veinte años e um dia”. Os demais foram todos redigidos em francês.

Confesso que, por mais que eu conhecesse outro idioma, que não o do país em que nasci, não conseguiria fazer isso. Não teria confiança suficiente a esse ponto. Por causa dessa particularidade, há, até, quem se confunda quanto à sua nacionalidade e garanta que Jorge Semprun era francês. Não era. Espiritualmente, por tudo o que viveu nesse país, até pode ser. Mas... era, de fato, espanhol, tanto que foi ministro em sua terra natal.

Outra particularidade interessante é a que se refere ao livro “Autobiografia de Federico Sanchez”. Muitos devem ter ficado intrigados pelo fato de uma “autobiografia” haver sido escrita por outra pessoa, que não o biografado. Os apressadinhos e mal informados detectam aí uma contradição. E, aparentemente, há mesmo.

Todavia, Federico Sanchez era o próprio Jorge Semprun. Foi um pseudônimo que adotou, quando no exílio, para exercer intensa atividade clandestina de oposição à ditadura franquista. É certo que assinava artigos e manifestos com outros tantos nomes inventados. Mas o mais costumeiro, que usou por muito mais vezes, foi, mesmo, o de Federico Sanchez.

Como se vê, não se pode e nem se deve apegar a estereótipos quando se trata de definir intelectuais. Há, de fato, os discretos, e até tímidos, que vivem encerrados em gabinetes e bibliotecas, criando ideias e conceitos, evitando, sempre que possível, a exposição pública. Mas nada impede que seja, simultaneamente, homem de ação, sem perder a primeira condição. Jorge Semprun que o diga.


Boa leitura!

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk

Um comentário: