sábado, 31 de março de 2018

Cena qualquer 2 - Márcio Juliboni


Cena qualquer 2

* Por Márcio Juliboni


Já eu não suporto risoto fora do ponto, diz ela com esgar. Olha firme os convivas, pois a situação apresentada requeria seriedade. Noite quente, rodinha de amigos no jardim bem cuidado “pelo meu jardineiro Seu Zé, uma gracinha ele, menina” e criado pelo famoso-paisagista-que-projetou-o-paisagismo-daquele-prédio-famoso-você-sabe-né. Vinho e música de bom-gosto. Pois imagine que, outro dia, estava no restaurante de minha irmã e não me contive. Quando o chef veio me perguntar o que achei do jantar, eu tive que dizer: “Olha, me desculpe, mas o seu risoto passou do ponto! Cozinhou dois minutos a mais”. Ah, não, gente, tem coisa que não dá, né? Cabeças acenam com pesar. Sim sim sim. É, não dá. Nem pensar... sim sim. Fez certo. Faria o mesmo. Mas é claro!

Comigo, o negócio é vinho, continua o amigo. Cara, não consigo mais beber se não for a taça certa! Deus me livre! Depois que a gente se acostuma, não dá mais! Ah não! Você pega um vinho com alma, encorpado... aquele.. olha para sua taça....esse! Esse aqui! – o dono da casa sorri satisfeito com a aprovação do vinho pelo amigo, sim, está sendo um bom anfitrião – Enfim, o amigo continua, você pega esse vinho e coloca em uma taça errada... não... não dá. Descaracteriza tudo! É como comer risoto com talher de peixe! Os amigos gargalham, concordando. Ele sorri, satisfeito com a comparação. Olha para a taça em suas mãos, lembra-se da coleção de taças que ganhou de presente – um par para cada tipo de vinho-, bebe vagarosamente um gole e se refestela na cadeira, enquanto os outros aguardam, ansiosos. Ergue a taça, num brinde. Viva a Riedel! Viva! Viva!

O vento agita cada vez mais cabelos e toalhas de mesa. Plantas dobram-se. Gotinhas. Gotas. Muitas gotas. Chuva. Todos correm para o living. Maldita chuva, gritam alguns. Porra, que merda! Logo agora! Recolhe o vinho! Cacete, meu charuto! Ai, meu cabelo! Fiz escova hoje! Que merda! Nem parecia que ia chover. Tava uma noite tão bonita, não tava? É, tava. Não tava. Tava. A lua tava bonita, diz o mais tímido de todos, aquele que sempre sentava no canto e ria baixinho. Os convivas se exasperam. Por que convidam esse mala até hoje? Nada a ver... E eu sou lá de ficar olhando a lua, meu!? Faz favor! Tenho mais o que fazer, diz um deles, contendo-se para não emendar um "é por isso que você é o único duro da turma, mané", enquanto vira-se pra outro: bicho, bicho, já falei pra não cortar o charuto
assim, caralho...
 

*Jornalista, cobre Economia e Negócios no portal Exame. Trabalhou no serviço de notícias online, “Panorama Setorial”, do jornal Gazeta Mercantil, na Agência Estado e em várias revistas segmentadas. Iniciou a carreira na grande imprensa em 2000.




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