A
bruxa de Port Alfred
*
Por Amanda Lourenço
Foi
provavelmente no verão de 2006, tanto quanto Susan Read consegue se
lembrar, que encontraram a baleia. Ela e o marido, acompanhados dos
três filhos pequenos, haviam decidido ir à praia, num pequeno
trajeto de carro de sua casa, não muito longe do extremo sul do
continente africano. Mal chegaram, e Read se deparou com a baleia
estendida na areia. Já estava morta. A decisão que tomou a seguir
lhe pareceu óbvia, naquele momento: levaria o corpo do cetáceo para
casa.
A
família era proprietária de 100 hectares de terra a 20 quilômetros
da costa, na pequena cidade de Port Alfred, na África do Sul.
Transportar a carcaça até lá não foi tarefa fácil. “Era o
cheiro da morte, ninguém estava suportando”, lembrou Read, rindo.
Arrastaram o animal pela praia até a caminhonete e, depois de muito
esforço, conseguiram erguê-lo e equilibrá-lo em cima do veículo.
Na estrada, os motoristas que vinham na direção contrária corriam
o risco – bastante incomum, mesmo nas estradas da África – de
levar uma rabada de baleia no para-brisa.
Todo
esse esforço tinha uma razão: ossos de baleia, como todo mundo por
ali sabe, potencializam e multiplicam os poderes das bruxas. Em sua
casa, Read espalhou vários pedaços póstumos do animal pelo
terreno. A peça principal, o arco do maxilar, serve até hoje de
portal para a área da piscina. O crânio decora o jardim da frente.
“As
pessoas por aqui dizem que sou bruxa”, explicou Read. Com seus
olhos azuis, cabelos encaracolados e uma personalidade forte, ela
parece mesmo uma mulher cheia de poderes. Aos 42 anos, tem a voz
rouca dos fumantes inveterados, mas fala sempre de um jeito muito
suave. Descendente de ingleses, estudou teatro quando adolescente e
rodou o país na juventude, antes de ir parar em Port Alfred, para
onde seu pai havia se mudado. Lá, conheceu um imigrante italiano,
Roberto Josi, com quem se casou.
Além
dos filhos que tiveram, Josi trazia outras cinco crianças do
primeiro casamento. Houve uma época em que todos dividiram o mesmo
teto. Hoje moram na fazenda apenas Read e os três filhos. O marido
morreu há um ano. Os enteados cresceram e saíram de casa.
A
vizinhança rural é composta por algumas dezenas de brancos, quase
todos proprietários de terras, e pela numerosa comunidade Xhosa, o
povo original da região. Na primeira vez que Susan Read teve um
ataque de epilepsia, logo depois que ela e o marido se mudaram para
lá, a notícia correu rápido: aquele é um dos sintomas mais claros
para identificar bruxas. Read disse ter se divertido com as histórias
que corriam. Não perdeu a oportunidade de oferecer um chá de ervas
quando Lili, a faxineira xhosa que ainda trabalha na sua casa, ficou
doente e não havia remédio que a fizesse melhorar. Depois que Lili
se curou – obviamente um efeito do chá milagroso –, a certeza do
poder da mulher branca casada com o italiano só aumentou na
vizinhança. Seu jeito despachado, irreverente e barulhento
contribuía para a fama. A chegada dos ossos de baleia pôs um ponto
final em qualquer dúvida que por acaso ainda restasse na mente dos
mais céticos.
A família de Susan Read sempre cultivou uma
imagem misteriosa. Além da bruxaria, a vizinhança também
desconfiava que eles fizessem parte da máfia. “Meu marido tinha
uma compulsão por desobedecer leis”, ela contou, sem dar maiores
detalhes. Sabe-se que, entre outras atividades ilegais de Roberto
Josi, lhe apetecia dar carona aos negros durante os anos do
apartheid, permitindo-se inclusive atravessar com eles os territórios
em que os não brancos estavam proibidos de entrar. Josi também
fumava muito e tinha sua própria plantação de maconha. Morreu de
câncer na garganta. Mas Read não atribui a doença ao tabaco. “Ele
tinha muitos segredos profissionais, sobre os quais não podia falar;
dizem que nesses casos a garganta fica comprometida.”
Como
em diversas outras áreas da África do Sul, o local onde ela e os
filhos moram não é dos mais seguros. O vizinho mais próximo já
foi assaltado uma dezena de vezes, assim como muitos outros em volta,
mas a sua casa tem sido curiosamente poupada. “Nem tenho a chave da
porta”, contou.
Na
época em que o marido ficou doente, em 2014, Susan passou a
trabalhar numa floricultura na cidade. Continua por lá, mas essa não
é a sua única fonte de renda. A família dispõe também de uma
segunda casa no terreno, que é alugada para turistas, atraídos pela
vida selvagem africana. Da piscina, não raro os hóspedes conseguem
avistar girafas passeando no morro em frente, separado da propriedade
apenas por um riacho.
Na
própria fazenda há antílopes, zebras e javalis-africanos. Volta e
meia, Read captura um ou outro desses bichos e os vende para reservas
privadas de caça ou de safári. “Os proprietários compram animais
de outros lugares e os colocam no próprio terreno para os americanos
acharem que estão caçando alguma coisa”, ela disse.
A
moda da “criação” de animais selvagens na região é nova: há
apenas vinte anos as mesmas fazendas estavam ocupadas por plantações
de abacaxis e por rebanhos de bovinos. Mas com a alta do novo filão
turístico, os fazendeiros encontraram uma forma mais fácil de
ganhar a vida. Os animais selvagens são resistentes e não precisam
de maiores cuidados – vivem soltos, nem sequer é preciso
alimentá-los.
O
resultado dessa conversão coletiva foi a demissão em massa de
funcionários, quase todos xhosas, que trabalhavam nas plantações e
nas criações de gado. Sem emprego, muitos enfrentam graves
dificuldades financeiras na província mais pobre do país, a Eastern
Cape, e não raro passam fome. Houve mesmo quem começasse a roubar e
a matar os animais selvagens, apenas para se alimentar. Os assaltos
às grandes casas da região também aumentaram. Durante uma conversa
no início deste ano, Read admitiu o segredo de sua serenidade. “Meus
ossos de baleia ficam bem à vista”, afirmou, sentada tranquila num
banco da varanda, com um cigarro na mão. “Ninguém se mete com a
gente.”
*
Jornalista.
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