Retratos
conhecidos
O homem, dada sua imprevisibilidade e à
impossibilidade de saber o que realmente o semelhante pensa – não o que
expressa, mas o que de fato lhe vai no íntimo – é um poço de mistérios, que
alimenta a ficção, em especial a literatura. O que são contos, romances,
novelas e peças teatrais senão observações de comportamentos alheios, expostas
em forma de histórias para prender o leitor (ou espectador)? Reli, ontem, um
livro de contos de Machado de Assis. É um tratado de psicologia.
É incrível como o escritor penetra os
meandros da alma humana e se orienta em seu interior. É admirável como consegue
dissecá-la, virá-la do avesso e revelá-la nos seus mais secretos e recônditos
becos, com a precisão de um exímio cirurgião! E faz isso de uma forma
espontânea, simples, deliciosa, que nos retém a atenção, sem lançar mão de
polêmicas teorias ou de pedantes citações. Não se pode, pois, tratar do tema “genialidade
e loucura” em Literatura sem recorrer à vasta, variada e genial obra de Machado
de Assis. Gênio, no caso, é ele, que sequer frequentou universidade e foi
autodidata, mas se consagrou como um dos mais brilhantes escritores da
Literatura mundial. Loucos, por seu turno (e talvez nem tanto), são os vários
personagens que criou, com complexos perfis psicológicos.
Não há uma única pessoa de instrução
mediana que não entenda o que Machado de Assis escreveu. No entanto, suas
análises psicológicas são complexas, profundas, agudas e nos conduzem à
introspecção. Muitas das fraquezas de seus personagens identificaremos em nós,
se formos sinceros em nossa auto-avaliação, sem concessões de indulgência ou
tentativas de nos enganar, o que é mais comum do que estamos dispostos a
admitir. Toda a obra machadiana é profunda, sensível, analítica, um exercício
de dissecação da alma humana, embora pela variedade de situações, isso fique
mais claro em seus contos.
Alguns são obras-primas da literatura
mundial, embora no Exterior somente os escritores mais eruditos ou leitores
mais cultos já tiveram o privilégio de ler algum livro seu. O melhor parâmetro
para medir sua genialidade é a atualidade do que escreveu há mais de cem anos.
Expurgados costumes e modismos da época, permanece a essência humana, pouco
mutável.
Cruzamos a todo o instante, nas ruas,
no trabalho, nos bancos, nos cinemas, nos teatros e nos campos de futebol, com
os seus personagens. Somos amigos de alguns deles e inimigos de outros. Muitos
têm os nossos traços, nossos cacoetes, nossas grandezas e nossas misérias. E
principalmente nossas contradições. Em uma época em que Sigmund Freud era
desconhecido no Brasil, Machado de Assis cunhava em seus personagens o que o
gênio austríaco levou anos de pesquisas para descobrir.
Um desses contos magistrais do
escritor, (entre tantos), é "A Cartomante". Nele o autor realça a
imprevisibilidade que cerca a vida. Partindo dessa premissa, sem pedantes
exposições filosóficas e nem estéreis recriminações, ridiculariza os que
acreditam em destino. E, através de finíssima ironia, perceptível para poucos,
ri dos que acham possível alguém desvendar essa coisa inexistente, essa
abstração, esse mero potencial, (algo que não aconteceu e pode sequer acontecer
para muitos), que denominamos de "futuro". Tolice acreditarmos em
adivinhos, que sobrevivem graças aos ingênuos, para não dizermos basbaques.
Destaquei esse texto apenas para exemplificar. Do livro que li, não houve um
único conto que destoasse ou despertasse interesse menor.
Alguns personagens são tétricos, mas
acabam sendo fascinantes exatamente por isso. Como Fortunato, indivíduo que
vivia socorrendo acidentados e doentes, cujos atos eram interpretados como
virtuosos, repletos de piedade e de solidariedade com os desvalidos
característica dos santos. Na verdade, o que apreciava era o sofrimento alheio,
que o punha em êxtase. Seu sadismo, posto que mascarado, cuidadosamente
dissimulado, raiava à loucura. É personagem de um dos contos, cujo título não
me recordo. Quantas pessoas que veneramos pelo seu aparente desprendimento não
são movidas por esta tara!?! Ou por outras até piores!?! Mas, como saber?
É impossível conhecer de verdade o
nosso semelhante. O máximo que podemos fazer é reunir indícios que dêm pálida
idéia de como ele é. A rigor, não podemos afirmar sequer que nos conhecemos. A
cada momento, nos surpreendemos com determinadas reações que temos (positivas e
negativas), que não supúnhamos que fôssemos capazes e para as quais não
encontramos explicação. Augusto Frederico Schmidt escreveu no poema
"Retrato do Desconhecido":
"Há
vozes que aclaram o ser,
macias
ou ásperas, vozes de paixão e de domínio,
vozes
de sonho, de maldição e de doçura".
E Camões resumiu:
"Anda
sempre tão unido
o
meu tormento comigo,
que
eu mesmo sou meu perigo".
O leitor já adivinhou quem é este
desconhecido, cujo perfil o poeta tentou traçar. Basta que nos olhemos no
espelho. A imagem irá nos desvendar contornos familiares... tão nossos
conhecidos...
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Esses escritores são inteligentes demais. Qualquer coisa que fizessem, a fariam bem.
ResponderExcluirMachado é reverenciado com a primazia que lhe é peculiar. É um dos meus autores favoritos desde a adolescência. Quanto ao restante da temática abordada, acrescento que, se já é difícil conhecermo-nos imagine conhecer nossos semelhantes.
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