segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Ressentimento

* Por Daniel Santos

O marido não sabia adúltera a esposa que o esperava sempre às seis com a janta já pronta, banho tomado e sorriso de confortá-lo ao chegar suarento, com maus-odores e maus bofes, após um dia só frustrações.

Vivia de percorrer as ruelas mais encardidas do subúrbio, sob a ferocidade de um sol que o mordia como um cachorro, enquanto distribuía amostras grátis de remédios para pressão pelos consultórios médicos.

Depois regressava a casa, a pele ensebada, sapatos encharcados  de suor, nariz entupido pela fuligem em suspensão, e tudo o que queria era o frescor do lar, lençóis perfumados, janta quentinha e ... ah! ... descanso.

Tantos mimos o alegravam e compensavam o cotidiano rastaqüera que lhe doía como um açoite, mas tudo terminou quando chegou mais cedo que de costume e viu o vizinho saltar ladino sobre o muro da sua casa.

Os homens do boteco exigiram atitude, mas ele deu voltas e voltas no quarteirão e só entrou bem mais tarde. Chutou o cachorro, queimou o broto da begônia com cigarro, rilhou dentes através da madrugada.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     * Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

Um comentário:

  1. O sol que mordia, o cotidiano que açoitava. Imagens que mostram bem a infelicidade do representante comercial. Por comodismo, parece que todos vão preferir deixar como está.

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