Em memória de Trajano Godoy
* Por Marco
Albertim
Deu-se que Trajano levantou-se de vez; levantou-se
sem dar prumo às pernas tão conhecidas por sustentar os quase dois metros de
altura, o tórax e o rosto tão quadrado quanto uma moldura sem curvas. O rosto
mostrou-se convulso, os olhos fitos no chão e o suor encharcando a testa. Não
que fosse dado a preocupações com o juízo que fizessem de si. De uns dez anos
para cá, dera e vinha dando mostras de enfado no tórax. Por seu porte e modo
elegante, fora brioso no cumprimento de tarefas. O ir e vir dos outros, enchera-o
de conhecimento sobre o modo como cada um se desincumbia de sua atribuição.
Trajano não confessou o cansaço, inda que se
sentando com as pernas cruzadas e os quadris colados ao encosto da cadeira
dura, amaciado por outras costas que ali tinham apoio. Ele juntou na memória os
traços de todos que cruzaram com ele a distinção de espreitar o fim da
ditadura. Agora vivendo sem rebuços, deixou que o bolor dos olhos e a exaustão
do juízo toldassem a apreciação dos novatos na inteireza de suas forças, do que
podiam dar à peleja.
Levantou-se sem se despedir dos outros em volta da
mesa, sem pagar a parte que lhe cabia na despesa. Os anos de militância
deram-lhe rijeza no julgamento que tinha dos fatos, de cada um dos demais. A
testa escura, sulcada, os olhos cobertos por sobrancelhas grisalhas, um ou
outro fio de negrume sedoso, tornavam-no suscetível ao indulto; mais ainda em
se tratando de um pecadilho sobrevivente do tempo em que, com robustez,
enfrentara a persuasão religiosa do coronel Ibiapina no manuseio da manivela
elétrica.
Trajano levantou-se depois de entornar três doses
de gimpari. A proeza semântica, assim o cria, servia de despiste para que não o
flagrassem no uso sem cálculos da bebida. Juntar no mesmo copo a genebra com o
Campari fora fácil de intuir na prostração das ideias; não o bastante; fora
preciso dar-lhe um nome para que o sabor se tornasse sonoro e distraísse quem o
espreitasse perto do juízo final.
Luiz Quadros, na mesa, foi o primeiro a esboçar
indulto pelo sumiço de Trajano. Não tanto pela moldura dos anos nos costados
dele, inda que o traço fosse visível e refulgisse no tronco cheio, em forma de
baú, de Luiz Quadros; mas pela circunstância de que a irmã de Trajano, noutra
época, fora casada com ele, Luiz Quadros. Ela, acrescente-se, fez pouco caso da
certidão de casamento, assim que notou os sinais de desaprumação nas pernas do
marido.
Trajano virou a esquina ajudado pelo susto de se
crer tão mortal quanto um crente; ele incréu, acima de crenças vãs. O vento
abanou-o nas pernas sob a bermuda, e convenceu-o de que o traje apenas o
ajudara a tramar o consórcio entre a genebra e o coquetel já pronto na garrafa.
Três dias depois, o mesmo vento que soprara dali os
passos de Trajano, trouxe a notícia de que ele, em casa, não conseguira segurar
a xícara de café para levar à boca. O tremor das mãos, numa das vezes,
salpicara o pijama listrado com manchas marrons do café.
Luiz Quadros, com os olhos pontudos na vermelhidão
do uísque, disse com a familiaridade própria de quem fora membro da família de
Trajano Godoy; disse como se os pulmões de Trajano, infensos a achaques, não
respirassem no mesmo ritmo do enfado no tórax.
- Trajano tem a couraça de um bolchevique! –
sentenciou sem evitar os salpicos de saliva sobre a mesa.
- Já aconteceu outras vezes – emendou o garçom. –
Trajano Godoy não vai abotoar o paletó sem deixar escorrer o último pingo
daquelas duas garrafas.
Apontou para a prateleira de verniz escuro do
Scotch Bar, onde as duas garrafas – Gim e Campari – luziam a metade do conteúdo
à espera do usuário.
Luiz Quadros, ao casar-se com a irmã de Trajano,
não fizera caso com a recusa da nubente em trocar o nome na certidão de
casamento. Creu-se capaz de recuperar o passado.
- Se Trajano abotoar o paletó, ninguém, nenhum de
nós terá o direito de usurpar o direito que ele ganhou de provar o conteúdo
daquelas duas garrafas. Elas serão mantidas no mesmo lugar, feito dois ícones
em sua memória!
Trajano morreu no hospital. Os amigos não o
visitaram nos três dias em que esteve internado. Não tiveram paciência de
sentar na sala de espera, à hora autorizada para visitas.
- Não me rendo à doença de Trajano Godoy! – arguíra
Luiz Quadros.
O garçom do Scotch Bar foi ao velório. Ao entrar na
sala onde o ataúde fora posto, cruzou com Luiz Quadros sob o umbral. A modo de
cumprimento, Luiz Quadros fez um esgar com os lábios abertos, mostrando os
dentes trincados; depois ajuntou:
- É assim que ele está esperando por você.
À noite, no bar, o garçom, único a não beber, tirou
da prateleira a bebida da estima de Trajano Godoy. Despejou-a até ocupar metade
do copo, o mesmo copo de uso de Trajano.
- Bebo à memória de Trajano Godoy. Ele queria me
recrutar para o Partido. Eu recusei. Hoje ninguém paga a conta. Deixem que
descontem no meu salário
Bebeu tudo de uma vez e chorou convulso.
*Jornalista e escritor. Trabalhou
no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos
para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional
de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho
Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas
“Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de
contos e um romance.
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