sábado, 23 de março de 2013


Pianolatria

* Por Mário de Andrade

É costume dizer-se que São Paulo está musicalmente mais adiantado do que o Rio. E logo a prova: “Tivemos Carlos Gomes. Temos Guiomar Novaes”.

Não há dúvida. O Brasil ainda não produziu músico mais inspirado nem mais importante que o campineiro. Mas a época de Carlos Gomes passou. Hoje sua música pouco interessa e não corresponde às exigências musicais do dia, nem à sensibilidade moderna. Representá-lo ainda seria proclamar o bocejo uma sensação estética. Carlos Gomes é inegavelmente o mais inspirado de todos os nossos músicos. Seu valor histórico, para o Brasil, é será sempre imenso. Mas ninguém negará que Rameau é uma das mais geniais personalidades da música universal... Sua obra-prima, porém, representada há pouco em Paris, só trouxe desapontamento. Caiu. É que o francês, embora “chauvin”, ainda não proclamou o bocejo sensação estética.

A senhorinha Novaes é uma grandíssima intérprete . Sinto prazer em afirmar essa verdade e prometo, para logo, um estudo carinhoso de sua personalidade. Porém a senhorinha Guiomar Novaes e Carlos Gomes provam quando muito que temos a fortuna de produzir 2 talentos musicais extraordinários.

- E a nossa escola de piano? retrucarão... Não há dúvida. Possuímos nossa escola de piano como, certo, a América do Sul não apresenta outra. Mas não é o progresso implacável do piano, aqui uma das causas do nosso atraso musical? É. Dizer música, em São Paulo, quase significa dizer piano. Qualquer audição de alunos de piano enche salões... Qualquer pianista estrangeiro tem aqui acolhida incondicional...

Mas é quase só. Certo: há na cidade virtuoses e professores de canto, violino, harpa etc. de seguro valor. Mas não há o que se poderia chamar a tradição do instrumento. Não há uma continuidade de orientação firme e sadia. E, principalmente, não há alunos. O violinista com estudo de seis anos é raríssimo. O flautista ainda o é mais. No entanto, um Figueras, um Mignone que dignos, cuidadosos mestres! ...

Mas qual! Há uma fada perniciosa na cidade que a cada infante dá como primeiro presente um piano e como único destino yocar valsas de Chopin!...

“Sou alfa e ômega, primeiro e último, princípio e fim” como no Apocalipse.

E as manifestações mais elevadas da música? E o quarteto e a sinfonia?

São Paulo não conseguiu ainda sustentar uma sociedade de música de câmara. E só agora a sinfonia parece atrair um pouco os pianólatras paulistanos.

Bem haja pois a Sociedade de Concertos Sinfônicos!

No Rio há tudo isso. Há tradição de violino, de violoncelo, de canto... Com que inveja verificamos há pouco o admirável conjunto de Paulina D’Ambrósio! No Rio ouve-se a sinfonia periodicamente. No Rio há uma educação musical.

São Paulo tem apenas uma educação pianística, uma tradição pianística. Necessitamos dum quarteto verdadeiramente ativo. Precisamos proteger a Sociedade de Concertos Sinfônicos, em tão boa hora inaugurada.

Só então, livre do preconceito pianístico, São Paulo será musical.

(Crônica publicada na revista “Klaxon” n° 1 de 15 de maio de 1922)

* Poeta, romancista, musicólogo, historiador e crítico de arte, um dos fundadores do Modernismo no Brasil.           

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