segunda-feira, 18 de março de 2013


El Che Papa

* Por José Ribamar Bessa Freire

Tudo o que acontece no Vaticano repercute na Paróquia de Aparecida, em Manaus, de forma quase instantânea. Ainda mais, quando se trata de mudança de papa. Se o Sumo Pontíficie, com todo respeito, soltar sem querer um pum discreto em Roma, ele vai ecoar pelos becos do bairro onde nasci. Sempre foi assim, mas agora a velocidade e o estrondo são maiores, com o poder da mídia, que usa as novas tecnologias para ampliar e espetacularizar o fato, digo o flato, infantilizando o telespectador, anestesiando e agredindo a nossa inteligência.
O Jornal Nacional (JN) da Rede Globo se especializou nisso de confundir fato com flato. Enviou um exército de repórteres a Roma e dedicou 71% do seu espaço só para a eleição do papa, segundo o Controle da Concorrência, instituição que monitora inserções comerciais para o mercado. No entanto, deu pouca informação substancial. Tudo foi formatado para evitar qualquer brote de pensamento crítico. Entrevistou na Praça de São Pedro turistas brasileiros, seminaristas, brazucas enrolados na bandeira do Brasil, socialaites verde-amareladas, num exibicionismo folclórico do tipo "Galvão, filma eu". Pura perfumaria! Saturação de fragrância.
Perfume demais agride o olfato, enjoa e dá dor de cabeça. O JN gastou tempo precioso para dizer que o papa tem só um pulmão, que ele recusou a limusine, que anda de ônibus, que pagou pessoalmente a sua hospedagem, que ama os pobres, que é carismático, que tem bom humor, que o sapateiro mexicano fez um novo modelo de sapato papal. Ou para mostrar a gaivota na chaminé da Capela Sistina, o que lhe permitiu especular sobre a presença do Espírito Santo.
A Igreja, coitada, sufocada em escândalos e problemas administrativos e de valores que angustiam 1.2 bilhão de fiéis espalhados pelo mundo - pedofilia, negociata do Banco Ambrosiano, roubo de documentos, cardeais ficha-suja, celibato dos padres, uso de camisinha, aborto, matrimônio gay, divórcio... E o JN nem seu-souza. A fé virou mercadoria. E espetáculo.
O JN seria mais jornalístico se enviasse um correspondente para acompanhar a eleição do papa, não da Piazza di San Pietro, mas da Praça Bandeira Branca, em Manaus. Lá comprovaria a importância de um novo papa e de como ele mexerá com a vida dos paroquianos.
Tiro por mim. Posso testemunhar historiando dois exemplos: eu e meu primo Caio. Ambos, de família inescapavelmente católica, vivemos a infância em Aparecida, mas sob diferentes papados, porque ele é mais novo do que eu. E isso influenciou de forma diferenciada nossas práticas e nossas mentes. Eu fiquei mais amargo, rancoroso e ressentido. Ele, mais aberto, mais light, mais afável. Sabe por quê?
Cruzada Infantil
O Papa Pio XII era quem comandava a Igreja Católica, nos anos 1950, quando entrei na Cruzada Eucarística Infantil. A Cruzadinha, como era conhecida, reunia meninos e meninas de 7 a 13 anos, tinha como padroeiro São Tarcísio, mártir da Eucaristia, e veio "trazer ao Brasil, um vigor novo e forte, dos pampas ao norte", com a participação de milhões de crianças.
Comecei como "aspirante", nas aulas de catecismo para a primeira comunhão. Usava, então, uma fita amarela com uma cruz azul no centro, presa na camisa por um broche. Depois, passei a "perseverante", quando ganhei uma faixa da mesma cor amarela que cruzava diagonalmente o tórax, do ombro esquerdo até o quadril direito.
O padre Cristovão, um americano simpático, organizava o catecismo aos sábados, as missas aos domingos, e de vez em quando uma procissão, onde a Marlene Bandeira, uma menina que era membro da Diretoria, vestida de branco, carregava o estandarte da Cruzadinha. Ela era responsável por redigir as atas das reuniões. Rezávamos e cantávamos o hino da cruzada: "Somos pequenos da Cruzada / Terna esperança do Senhor".
O outro hino era mais belicoso. O "Cruzadinhos amantes da Igreja" exaltava "a santa peleja, no combate do bem contra o mal", advertia que "para sermos perfeitos cruzados, sempre ao Papa estaremos unidos" e finalizava com um grito de guerra:
- "Eia! Sus! Cruzadinhos amigos / a marchar nos impele o dever / Sem temor afrontando os perigos / Pois lutar por Jesus é vencer".
Saíamos da igreja com os cascos afiados, cocainados, incendiados por um furor guerreiro, nós, os soldados mirins do Exército de Cristo. De lá íamos, muitas vezes, atirar bombinhas de São João, como se fossem granadas, dentro do templo Batista, na Xavier de Mendonça, em frente à padaria do seu Armando! Gritávamos "crente do cu quente" na hora da explosão. Era um horror. As crianças batistas choravam. Os cultos celebrados pelo pastor Chagas Carneiro, um homem bom de cabeça branca, eram interrompidos. Até que a Igreja Batista cansada de guerra se mudou para a praça da Saudade, fugindo assim do terrorismo paroquial.
As bombinhas não eram produto apenas da molecagem. O papa tinha culpa no cartório. O próprio nome infeliz - Cruzada - remetia aos guerreiros antigos, que marcharam ao Oriente para combater os infiéis e libertar os lugares santos. A Cruzadinha queria libertar as almas e as nações do jugo do demônio. Essa era a consigna estabelecida por Pio XII: fora da Igreja, não há salvação. E lá de Roma ele fazia nossa cabeça no Bairro de Aparecida. E tome intolerância. E tome agressão. Taí o Geraldão que não me deixa mentir.
Mais sorte do que eu, teve meu primo Caio. Ele só entrou no circuito depois da morte de Pio XII, quando João XXIII - aquele camponês gordo e bonachão - assumiu, pregando o ecumenismo, a convivência com a diversidade, o respeito à fé dos outros, a tolerância. Depois do Concílio Vaticano 2°, ele publicou em 1963 a encíclica Pacem in Terris, que falava dos "sinais do tempo", estabelecendo diretrizes para a opção preferencial pelos pobres, criticando o colonialismo, defendendo os direitos dos trabalhadores e a dignidade da mulher.
Jovens em movimento
O Caio se deu bem, porque nunca foi um cruzado, jamais considerou outras religiões como obra do Satanás. É que João XXIII, com experiência na Turquia onde havia sido delegado apostólico da Santa Sé - terá visitado a Capadócia? - extinguiu a Cruzada Eucarística Infantil, que era - aqui pra nós - uma aberração, pois usava crianças para o exercício da intolerância. João XXIII criou, para substituí-la, o Movimento Eucarístico Jovem. Meu primo, que viveu nesse ambiente pós-conciliar e moderno, tem outra cabeça, é um homem de fé, mas não carrega sentimento de culpa por agressões contra quem professa outra religião.
Agora, Francisco, o novo papa argentino assume tropeçando em um discurso ambíguo. De um lado, faz um gesto em favor do ecumenismo, afirmando querer melhorar as relações entre católicos e judeus, o que é positivo, mas de outro afirma que "quem não reza para Jesus, reza para o diabo". É um ecumenismo limitado, porque deixa de fora o Islamismo, o Kardecismo e as religiões afro-brasileiras e indígenas: Umbanda, Pajelança, Catimbó, Toré, Candomblé, Culto de Ifá, Encantaria. O Caboclo das Sete Encruzilhadas, penhorado, agradeceria ser tratado com respeito.
Vamos ver qual será o discurso predominante do novo papa - o da Cruzada ou o do Ecumenismo amplo e irrestrito - e como vai operar na cabeça dos paroquianos de Aparecida. A professora da PUC/SP, Maria José Rosado Nunes, que dirige a associação das Mulheres Católicas pelo Direito de Decidir, está preocupada com o autoritarismo e a posição de Bergoglio contra os direitos das mulheres. Ela recomenda o diálogo entre religiões, a liberdade de expressão, o respeito à diversidade entendida como uma releitura evangélica nos dias atuais e não como uma ameaça aos valores cristãos.
- Queremos que o pontificado de Francisco se deixe refrescar pelos ventos do Concilio Vaticano II e abra a possibilidade de uma revisão doutrinal e pastoral sobre o conceito de família, divórcio, celibato, sacerdócio feminino, direito das mulheres, união entre pessoas do mesmo sexo e uso de preservativo para a vivência de uma sexualidade livre e saudável - disse a socióloga.
Se isso vai acontecer ou não saberemos logo que Jorge Mário Bergoglio se livrar do bombardeio ao qual foi submetido, com acusações pesadas sobre sua cumplicidade com a ditadura militar na Argentina ou sua omissão na prisão de dois padres, considerados subversivos, e no acobertamento do roubo de Ana, neta de Alicia La Cuadra, ex-presidente das Avós da Praça de Maio.
Uma guerra de acusações e de denúncias tomou conta das redes sociais, obrigando a mídia a registrar quem acusa o papa e quem o defende. Graciela Yorio, católica praticante, irmã do ex-professor de teologia de Bergoglio, o padre Orlando Yorio, já falecido, diz que está "convencida de que Bergoglio delatou meu irmão aos militares" e que ficou com sua fé abalada depois da eleição do papa. "Essa igreja não me representa mais. Tenho um profundo sentimento de injustiça". Diz que pode perdoar, mas citou Santo Agostinho: "Primeiro vem a verdade, depois a compaixão".
O porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi jura que as acusações são feitas por "uma esquerda anticlerical", que Bergoglio, uma vez nomeado arcebispo de Buenos Aires, "pediu perdão em nome da Igreja por não ter feito o bastante durante o período militar", deixando de seguir o exemplo de dom Paulo Evaristo Arns no Brasil, e que "depois de ser interrogado pela justiça argentina, Bergoglio nunca foi acusado de nada".
A situaçao, no entanto, se complica porque o Vaticano acaba de convidar Carlos Blaquier, dono do engenho Ledesma, para a posse do novo papa. Ele aceitou o convite, mas o Poder Judiciário não permitiu sua saída. Blaquier está sendo julgado por haver sequestrado 29 trabalhadores de sua empresa, que foram encaminhados para os centros clandestinos de tortura. Além disso, na última sexta-feira, um grupo de torturadores, encabeçados pelo general Menendez, se apresentou ao tribunal de Córdoba com o escudo do Vaticano no peito, saudando o novo papa.
O papa Francesco alerta - segundo a Folha de São Paulo - que a Igreja não é uma ONG, mas devia ter dito também que não é uma OG, uma organização governamental. De qualquer forma, resta esperar que a verdade aflore. Por enquanto, só me resta recorrer à memória da Cruzadinha Infantil e dizer que "eu, Marlene Bandeira, lavrei a presente ata que será assinada por mim e pelos demais membros da diretoria".
* Jornalista e historiador

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