sábado, 30 de março de 2013


Flores e vinhetas da última flor do Lácio

* Por Deonísio da Silva


Nossa língua portuguesa foi concebida em célebre poema de Olavo Bilac como a “última flor do Lácio, inculta e bela” e “ouro nativo”, além de “esplendor e sepultura”.

Palavras e expressões consolidaram-se de tal modo em nossa língua que muitas delas servem de vinhetas na imprensa, de que é exemplo o famoso verso “última flor do Lácio, inculta e bela”.

As vinhetas são assim chamadas porque os monges medievais enfeitavam seus escritos com desenhos de folhas e de cachos de videiras. No latim, videira é vinea. No francês, filho do latim, vinea tornou-se vigne. E a pequena vigne, vignette, tornou-se vinheta no português. As vinhetas, antes de migrarem para a escrita, estavam em móveis e louças, onde, aliás, ainda permanecem.

Os leitores, repartidos, detestam ou veneram Olavo Bilac. Integro o segundo lote. Textos de pouca ou nenhuma isenção ideológica lembram com surpreendente obsessão que o conhecido escritor brasileiro inventou o livro didático e o serviço militar, ambos obrigatórios, ainda que o primeiro apenas para os homens.

Mais cívicos, outros lembram que é autor de nosso Hino à Bandeira. A Bíblia já avisou que o justo sofre na boca dos ímpios. Mas os tempos mudam e quem hoje é ímpio, amanhã pode ser considerado justo e vice-versa. De todo modo, os ímpios hodiernos, quando referem Olavo Bilac, dão-no apenas como o autor do primeiro desastre de automóvel no Brasil.

E eis um caminho que se bifurca. Desastre veio do provençal antigo desastre, passando pelo francês désastre e pelo italiano disastro. Em todas as línguas citadas, designava originalmente desvio da rota do astro ou “contra os astros”, dada a enorme influência da astrologia em tempos remotos. Os antigos pensavam que as grandes desgraças e calamidades decorriam de desordens entre os astros, impedidos momentaneamente de zelar pelas coisas terrenas. E não recolhiam impostos para tais proteções. É, mas não vivemos no Céu. Vivemos na Terra. E aqui há impostos e desastres. Não deixa, porém, de ser poética a designação de desastre.

Uma curiosidade marca o primeiro deles no Brasil, envolvendo dois escritores: o poeta Olavo Bilac pediu emprestado o automóvel de José do Patrocínio e destruiu o carro do célebre orador abolicionista numa batida antológica. Ora, o chofer barbeiro – chofer passou a motorista – era poeta dos bons e seu nome completo formava um dodecassílabo: Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac. Chama-se dodecassílabo o verso de doze sílabas, também denominado alexandrino, em homenagem ao poeta francês Alexandre du Bernay, autor de Le Roman d'Alexandre,  canção francesa em forma de gesta, do século XII. Gestas eram poemas que celebravam grandes feitos.

Voltemos à “última flor do Lácio”, a língua portuguesa, uma das filhas do latim, que tem entre suas irmãs, entre outras, a espanhola, a italiana, a francesa. É inculta por descuido de seus filhos, mas é bela porque todos reconhecem a delicadeza de suas expressões, principalmente na fala, dadas as contribuições que recebeu dos novos falantes de além-mar, no Brasil, como na África e na Ásia.

A região do Lácio, localizada às margens do mar Tirreno, na Itália, foi subjugada pelos romanos no século IV a.C. Uma boa mostra de quanto a última flor do Lácio continua inculta são os programas apresentados no rádio e na televisão  no horário eleitoral gratuito, no varejo e no atacado.

E outros exemplos – no caso, maus exemplos – procedem de muitos de nossos políticos, desde há alguns anos cada vez mais expostos em programas de rádio e de televisão.

Não será o caso de estipular algum tipo de sanção para a falta de decoro no trato com o instrumento por excelência do exercício de suas funções? Afinal, além de maltratar a língua-mãe, cometendo crimes de lesa-língua, muitos políticos fazem isso impunemente, em nome de milhões de brasileiros, a quem representam no Legislativo ou em nome de quem governam no Executivo. Infelizmente nem o Judiciário está livre de ofensas à língua-mãe. Basta uma pesquisa em petições, denúncias, defesas e sentenças para comprovar que, conquanto os erros não sejam tão bárbaros como nos dois poderes, os tropeços na língua não são exceções.

* Escritor, Doutor em Letras pela USP, autor de 30 livros, alguns transpostos para teatro e TV. Assina colunas semanais na Caras e no Observatório da Imprensa. Dirige o Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, no Rio.


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