segunda-feira, 25 de outubro de 2010




Falta uma janela à sombra da história

* Por Eduardo Murta


Um traço mais, à esquerda, no alto, e lá estará a forma definitiva da tela. Uma bruma que não poderia pertencer a lugar outro, se não aos ares de Ouro Preto. Os telhadinhos parecendo desafiar a gravidade. Um risco de montanhas que soam a encomendas ao Mestre Aleijadinho. E a profusão de janelas. Ah, as janelas... São 272 vivas ali. Contadas uma a uma pelo próprio artista.

É aquela ao centro, tom mais escuro, que pede um reparo. A tinta borrando as bordas, escapando parede abaixo. Gui dosa o pincel e faz, meticuloso, a correção. Subtrai o excesso. Tempera as cores. Manhã seguinte estará seco. Aproveita o fim de tarde regado a vinho nos porões úmidos da cidade. Já conhecia as armadilhas de cada degrau – o buraco na terceira pisada, o desnível acentuado justo antes do final.

Mais que os degraus, sabia era dos segredos das mulheres do lugar. As tranças ruivas de Suzana se convertendo em amparo às mãos nas madrugadas que não tinham fim. Os seios de Marieta imitando melões maduros, que se imaginava um felino ronronando entre eles. E as ancas de Felisberta, artigo nobre para montaria. Valiam tanto, que eram disputadas em rodadas de peso no carteado.

Gui serpenteia de cor as ladeiras na volta. Porque lucidez é o que menos lhe restava naquelas horas. Mas o mínimo pra que ainda se maravilhasse, sem medo de enjoar o coração. As silhuetas das torres, as paredes que tinham ouvidos e voz, o chafariz que umedecera bocas de séculos tão distintos. Agradecia à vida por aquilo tudo. E sequer imaginava o que ela lhe reservaria, poucos passos à frente.

Só gira a maçaneta, porque ali não se trancavam portas. E vai contando os segundos, até se reencontrar com o quadro, no vão do terraço. Pára, esfrega os olhos, culpa o vinho, e observa de novo. Jura ver a luz. E, turva, a imagem dos braços acenando. Se afasta, mira outra vez, cambaleante. Estava lá, verdade, a chama hesitante. Era capaz de sentir o odor do cordão em brasa da lamparina.

Põe a face à lateral da tela e, pequeno que fosse, emergia dali um calor de súplica. Gui margeia os dedos pelo entorno da janela e, súbito, mergulha no desvão. Um quarto úmido, o cheiro do carvão adormecido. As grades pesadas fazendo o contorno à claridade que entra. Logo perceberá as palmas geladas lhe tocando. E a frase em tom de enigma: "Eu esperava por você". Se beliscou e, doendo, não era miragem.

Decidiu se apresentar. Os amigos o tratavam como Gui, inda que fosse Guignard. E o estranho, quem era? Joaquim. E onde é que estavam, afinal? Na prisão. Gui quintuplicou as órbitas, em assombro. Ouviu a marcha em bota, lá fora. Sentinelas a postos. O prisioneiro pediu que, como pudesse, intercedesse por ele. Falava o que falavam todos encarcerados: que era inocente. Entrelaçou-se às mãos do pintor e, misericórdia, que prometesse.
O artista apalpou o avental, quase um arco-íris, para anotar-lhe o nome, porque não dariam conta de um Joaquim qualquer. E estremeceu ao complemento:... José da Silva Xavier.

Quando mencionava o Tiradentes, Guignard já estava de volta ao canto do terraço. Se reaproximou do quadro, o fôlego lhe faltando. Viu a luz se pôr fraquinha, até sumir no mundaréu de janelas que ele mesmo fizera nascer.

E é Guignard, agora, o pincel inspirando linhas de novo. Pára diante do esboço que projetara para o casario daquela Ouro Preto universal. Às janelas, releva os traços geométricos. Em brumas, percebam, permite que assumam novas formas. Sutis formas de gente.


* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

Um comentário:

  1. Ouro Preto, cheia de encantos, mistérios.
    Em cada esquina, em cada degrau...histórias
    e mais histórias.
    Obrigado pela viagem.
    Abraços

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