Ridendo
dicere severum
* Por Pedro J. Bondaczuk
Os romanos tinham um provérbio que cabe a caráter
para quem quer dizer as grandes verdades, sem ferir suscetibilidades. Dizia:
“Ridendo dicere severum”, ou seja, “Dizer as coisas sérias rindo”. Se você disser para uma pessoa que a
admira e aprecia muito, mas sua expressão for carrancuda, os cenhos estiverem
franzidos e o olhar for duro e cortante, qual você acha que será a mensagem
recebida por ela? De apreciação e simpatia ou de rancor e antagonismo? Esteja
certo, certíssimo, que será a segunda.
Diz
o povo, em sua instintiva sabedoria, “que a verdade dói”. Nem sempre. Há
verdades que enobrecem, santificam e fazem justiça. Para evitar as que doem,
muitos recorrem a fantasias, mesmo sabendo que elas são irreais, frutos da
imaginação. É para compensar o que sabemos ser verdadeiro e, no entanto,
incômodo, que agimos assim. Esse procedimento, não raro, nos faz descambar para
a hipocrisia explícita.
Para
agravar ainda mais a contundência, na maioria das vezes as verdades são ditas
aos berros, quando não acompanhadas de ameaças ou impostas, a ferro e fogo,
mediante a violência. Em situações menos dramáticas, são proferidas com ar
carrancudo, solene e sério, como se isso fosse imprescindível. Não é!
O
poeta romano Horácio indaga, de forma inteligente e perspicaz, num de seus
clássicos poemas: “O que me impede de dizer a verdade rindo?”. De fato, nada!
Por que emprestar-lhe, pois, um caráter negativo e mau, que ela, na sua
essência, não tem? Conclui-se que não é tanto a verdade que incomoda ou que
dói. É a “forma” dela ser dita.
Muitos
recorrem à ironia para dizerem o que pensam, sem com isso se comprometer. Todavia,
essa estratégia não funciona. Se o destinatário da mensagem for alguém de pouca
perspicácia, irá entendê-la de forma oposta. Verá, na crítica, um grande elogio,
que de fato não foi feito. Caso seja alguém perspicaz e atento, passará a
devotar, pelo interlocutor, um rancor eterno. Essa forma de dizer as grandes
verdades, como se vê, também não funciona. Não é decisiva. É ineficaz.
Eu,
se fosse médico, por exemplo, jamais faria cara feia, e nem assumiria ares de
preocupação (quando não de tragédia) ao examinar um paciente. Se seu estado de
saúde for de razoável para bom, ele poderá até adoecer face a esse gesto muitas
vezes sequer não-intencional de quem o examina. Afinal, a imaginação tanto
opera maravilhas, quanto faz estripulias. Ademais, jamais diria à pessoa que
ela está desenganada e que seu caso não tem solução. Até porque, já soube de
curas milagrosas, que a ciência julgava impossíveis, pelo simples poder da
sugestão.
E
as palavras? O que dizer delas? O que falar da sua força, para o bem ou para o
mal? É certo que nem sempre o que se diz é o que se faz. Infelizmente. Todavia,
as palavras são a única forma de mostrarmos ao próximo o que pensamos, sentimos
ou queremos dele. É por esse meio, por exemplo, que lhe demonstramos afeto ou
desapreço, admiração ou repúdio, carinho ou rancor.
Os
gestos dão algum indicativo, mas são dúbios. Dependem de interpretação (daí
requererem policiamento dobrado, como enfatizamos). Olhares, sorrisos e toques
de mão igualmente são insuficientes para expressar sentimentos. As palavras,
todavia, posto que às vezes pobres para exprimir o que pensamos, sentimos ou
queremos, são a forma racional de comunicação. Não por acaso, só o único animal
inteligente da natureza tem a aptidão de falar (e de escrever). Por isso, temos
que ter cuidado com o que dizemos. E, principalmente, “como” dizemos: se com ar
de simpatia e conforto ou de hostilidade, deboche ou rancor.
Há
palavras que salvam, que constroem, que redimem e que consolam, registrando
fatos e feitos históricos, expressando idéias, produzindo reflexões,
desvendando sentimentos, despertando emoções e criando beleza. Mas há também as
que matam, as que ferem, as que corrompem, as que destroem, as que despertam
violência e ira e que produzem intensa dor. Depende de quem, quando e,
principalmente, “como” as expressa.
Insisto
(e reitero) que a palavra é o mais miraculoso engenho que o cérebro humano
engendrou para a comunicação com os semelhantes. E a criatividade do único
animal racional da natureza extrapolou todos limites ao criar não apenas dez,
ou mil, delas, mas bilhões, quiçá trilhões, em milhares de idiomas e de
dialetos. E a cada momento são criadas várias, novas, para expressar o que as
existentes não fazem com perfeição.
A
palavra escrita, então, é o máximo de criatividade e fundamento de toda a
evolução humana. Através dela, é possível preservar, indefinidamente, o que
cérebros privilegiados pensaram e criaram, geração após geração, como herança
dos antepassados à qual os homens de hoje acrescentam sua contribuição para os
do futuro.
E,
apesar de tudo isso, as palavras são tão pobres para definir e descrever alguns
pensamentos e sentimentos, como amor, amizade, saudade etc.! Principalmente
quando acompanhadas de gestos e de expressões ambíguos, que sugerem o contrário
do que se quer expressar.
Giuseppe
Ungaretti manifestou essa impotência de se chegar à absoluta clareza e precisão
no que se diz e se escreve, neste belíssimo poema: “Dias e noites/tangendo/em
meus nervos/de harpa//vivo desta jóia/doentia do universo/e sofro/de não
sabê-la/acender/na minha/palavra”. Volto
ao princípio destas considerações. Por que não se valer da estratégia, sugerida
há dois mil anos pelos latinos, ou seja, “ridendo dicere severum”? Não custa
tentar!
* Jornalista,
radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual
Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do
Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe,
ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova
utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
A verdade de fato pode trazer a justiça, e isso não é ruim. A verdade de fatos negativos é que pode doer. Ouvi-la de forma risonha, quando é fato desagradável, não me faria bem. Entenderia como ironia. Prefiro que seja dito da forma habitual, com gravidade. Para mim é melhor.
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