terça-feira, 2 de setembro de 2014

Drama que supera o de qualquer escritor

A redação de um livro, seja de que gênero for, exige, do autor, muito mais trabalho do que o leitor pode imaginar. Mesmo as obras-primas – talvez principalmente elas – requerem, não raro, esforço intelectual (e também físico e emocional) sobre-humano de quem as produz. E isso em condições ideais. Quais? Em um ambiente confortável e racional para redigir, com todas as facilidades possíveis e imagináveis de acesso a fontes de consulta e com tranqüilidade para escrever, sem ser interrompido a qualquer momento, por quem quer que seja. Imaginem redigir um livro em um lugar inóspito e distante da civilização, gelado, em um inverno rigorosíssimo, de frio polar, sem contar com nenhum material de apoio e o mínimo conforto material, tendo à disposição, apenas, uma velha máquina de datilografia e, ainda por cima doente! E mais, febril e tossindo a não mais poder!

Em condições como estas, a maioria de nós não conseguiria redigir, sequer, um bilhete, razoavelmente coerente, quanto mais uma obra literária que, ainda por cima, se tornou clássico da literatura mundial do século XX e vendeu (e ainda vende) milhões de exemplares, mundo afora, e gerando intensa polêmica, mais de seis décadas após sua morte . Essa foi a grande façanha de George Orwell, ao produzir seu imortal “1984”. O livro não foi escrito, como muitos ingênuos acham, num súbito sopro de “inspiração”, que tenha feito com que saísse da sua cabeça prontinho, tal como podemos lê-lo. Longe disso! Custou-lhe, isso sim, praticamente dois anos de intensíssima “transpiração”, além de insuportável tensão.

O texto teimava em não sair, não, pelo menos com um mínimo de coerência e qualidade. Foram inúmeras as revisões que o autor fez, talvez centenas delas, até que o texto ficasse minimamente do seu agrado. Orwell esteve, muitas vezes, até a pique de desistir. Eu, em circunstâncias parecidas com as dele, provavelmente desistiria. Aliás, nem começaria a escrever naquelas condições.  Por muito pouco, portanto, não ficamos privados dessa obra-prima, marcante, fundamental no que se refere à literatura distópica. E isso não se deveu, claro, à eventual falta de talento do escritor. Aliás, talentoso ele sempre foi, e muito. É que um bom livro, para ser produzido, salvo raríssimas exceções, requer de quem o escreve trabalho, muito trabalho. Ou seja, transpiração e não tanto a tão apregoada inspiração que, ademais, é coisa rara. E isso em condições ideais. Imaginem sem elas.

O editor do semanário britânico “The Observer”, Robert McCrum, na matéria “1984, o livro que matou George Orwell” – que tomei por base para algumas destas reflexões, em sua versão em português, publicada pela Revista Bula, com tradução de Amanda Gorski – conta a história da torturante estadia do escritor na ilha escocesa de Jura com o desafio de, prestes a morrer, concluir antes o livro que “tinha na cabeça”. Em determinado trecho do seu ensaio, destaca: “(...) Quando vemos o manuscrito original, encontramos (...) não tanto o toque de claridade, mas as correções obsessivas, em diferentes borrões de tinta, as quais revelam o tumulto extraordinário por trás da composição”.

Essa situação dele não me surpreende, por ser-me bastante familiar (e certamente o é a qualquer escritor). E isso contando com o recurso do computador, que facilita incrivelmente a tarefa tanto de redação, quanto, e principalmente, de revisão. Orwell, porém, não tinha nada disso. A cada correção que fazia, tinha que copiar tudo o que havia escrito outra vez, para tornar a revisá-lo, enchendo a lauda de borrões que o obrigavam a reescrevê-la de novo, e de novo, e de novo, isso dezenas, quando não centenas de vezes. Haja paciência e determinação!

Anos antes, em um artigo intitulado “Por que eu escrevo”, Orwell relatou um motivo, familiaríssimo a quem vive de fazer literatura, para se dedicar a essa atividade tão árdua e pouco compensadora, nem tão glamourosa como muitos pensam (muito pelo contrário): “Escrever um livro é horrível! O esforço é exaustivo, como a crise de alguma doença dolorosa. Uma pessoa jamais se sujeitaria a tal se não fosse dirigida por algum demônio, o qual não se pode resistir ou compreender. Esse demônio é o mesmo instinto que faz um bebê espernear por atenção”. E Orwell não estava certo? Quem é do ramo, sabe que sim!!

Apesar do esforço sobre-humano do escritor, “1984” teimava em não sair. E o editor, impaciente, cobrava-o a todo instante. O tempo continuava passando, dias, semanas, meses, e nada do texto ficar pronto. McCrum reproduz a justificativa que o atormentado escriba deu sobre essa demora: “É claro que o esboço é sempre uma bagunça com pouca ligação com o resultado final, mas ao mesmo tempo é o principal de todo o trabalho”. Muito doente, e após prudente hospitalização, o que atrasou ainda mais a redação, já tyão atrasada, do livro, Orwell foi forçado a desobedecer às ordens médicas para que repousasse e retornou à ilha de Jura, para completar o romance (ou novela, como queiram).

McCrum relata, assim, essa fase tão dramática: “A digitação original da cópia de ‘O último homem da Europa’ se tornou outra dimensão da batalha de Orwell com seu livro. Quanto mais ele revisava seu ‘inacreditavelmente horrível’ manuscrito, mais se tornava um documento que apenas ele podia ler e interpretar. Era, como ele disse a seu agente, ‘extremamente longo, com mais de 125 mil palavras’. Com característica franqueza ele declarou: ‘Não estou satisfeito com o livro, mas não estou absolutamente não satisfeito. Acho que ele é uma boa idéia, mas a execução seria melhor se eu não tivesse escrito sob a influência da tuberculose’”.

Num esforço sobre-humano, todavia (para encurtar a história) Orwell, finalmente, conseguiu concluir “1984”, cujo título provisório era, então, ainda “O último homem da Europa”. E conseguiu esse feito em cima da hora, no último prazo imposto pelo impaciente editor. E... deu no que deu. O sucesso, que praticamente não pôde usufruir, mais do que conseqüência, é a recompensa, justíssima, a um escritor carismático e genial. E, sobretudo, a um ser humano determinado e excepcional, que foi às últimas conseqüências para cumprir compromisso assumido com seu editor, com o preço da própria vida. Como eu poderia criticar algum eventual defeito de um livro escrito em tais circunstâncias?!!! Não poderia e não posso jamais!!


Boa leitura.


O Editor

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Um comentário:

  1. Gostei muito da definição dele para o que vem a ser escrever. Tão dramático quanto escrever um livro estando doente.

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