Vamos fazer sapatos?
* Por
Fernando Yanmar Narciso
Um de meus grandes ídolos, o documentarista com fetiche por galhofa
Michael Moore, lançou em 1998 o filme The Big One-Cortando Custos. Entre
outros tópicos, o documentário criticava as políticas trabalhistas da Nike, que
como todo mundo está careca de saber, é uma empresa americana de sapatos. Todo
mundo também sabe, talvez em forma de lenda urbana, que a empresa obriga
criancinhas chinesas cegas ao trabalho escravo nas fábricas há décadas por
causa da mão-de-obra quase gratuita. O que gera uma contradição nos Estados
Unidos, onde há tanto desemprego quanto em qualquer outro país. Sempre muito
solícito e atrás da piada perfeita, Moore encheu um ônibus com mendigos e pôs
todo mundo pra fazer piquete na porta da sede da Nike com faixas dizendo
QUEREMOS MUITO FAZER SAPATOS!
A menos que vocês tenham saído do ventre anteontem ou se submetido a
congelamento criogênico voluntário na década de 70, não precisam ser lembrados
que a situação da saúde no país é pra lá de apocalíptica. Falta de tudo nos
hospitais (inclusive os próprios hospitais), as faculdades de medicina se
encontram quase sucateadas. Doentes terminais morrem nas filas, 9 em cada 10 ditos
médicos tratam sua matéria-prima, ou seja, a nós, como carniça pros urubus, sem
um pingo de humanidade ou empatia para com os pacientes. Ora, mal pago como eu
sou, por que eu teria vontade de sorrir para eles? Os tempos de Hunter
“Patch”Adams nos deram um tapinha nas costas há muito tempo...
Então, alguma coisa precisa ser feita. O galho é que essa “alguma coisa”
só serviu pra causar a ira dos médicos- especialmente dos mal- informados. A
histeria é geral na comunidade médica desde que o governo anunciou que estaria
trazendo médicos de Cuba e outros países atrasados- detalhe que a negociação
para trazê-los já estava feita desde o ano passado- para cuidar de lugares onde
precisam encomendar band-aids pelo Sedex. Claro que os doutorezinhos
recém-formados e despeitados só enxergam os médicos “importados” como mais
concorrência, tendo ido até vaiar e insultar os cubanos recém-chegados. Como
diria Antonio Salieri no filme Amadeus, vão em frente, zombem, riam...
Mas quem estará recebendo sorrisos de vidas salvas nos mais profundos rincões
do país não serão vocês!
Por aqui, o que vale é somente o status da profissão, não o exercício
dela. O caboclo passa anos sonhando com aquele diz que ele vai vestir o jaleco
e pendurar o estetoscópio no pescoço, ser a inveja da vila. Graças a, talvez,
as novelas da Globo, as pessoas pensam que só existes num hospital
cardiologistas, ortopedistas, fisioterapeutas, neurologistas,
neurocirurgiões... Quem ia querer passar a mão num diploma e ir fazer carreira
tratando da unha encravada de Dna. Pafúncia num SUS em Quixadá? Gente da vila
quer é evoluir, não permanecer no mesmo lugar onde nasceu pra sempre!
Tanta confusão, tanta gritaria... Mas quando chega a vez de nossos
preciosos doutores mostrarem ao governo que ele estava errado, e provar que a
presença dos malignos médicos cubanos no país não era necessária, só um em cada
300 médicos brasileiros se habilitou a, digamos, se embrenhar no mato. Quanto
patriotismo! Olhem os mendigos- MENDIGOS!-, gente sem nenhuma experiência
profissional que Moore capturou na rua pra pedir um emprego na Nike, loucos
para trabalhar. Agora olhem para vocês mesmos, formados, preparados, que
literalmente transaram com os livros de medicina por quase dez anos, negando
fogo quando o país urge por uma mudança de mentalidade político-social. Eu, ir trabalhar na roça? Ficou doido? É mais divertido dar paulada em Dilma e
chamar os cubanos de escravos! Se bem que, contabilizando nossos custos e
benefícios, praticamente qualquer trabalhador brasileiro pode considerar-se
escravizado.
Alguns médicos dizem que não aceitariam se aventurar como os médicos de
Cuba e adjacências pela falta de infraestrutura. Conversa pra boi. Na mente
ambiciosa dos formandos, só serve o hospital Sírio-Libanês ou, na falta de
vagas, no São Magno da novela das 9. Quer dizer, em alguns postos de saúde por
aí, se chega alguém com um osso exposto, o melhor que podem fazer é lavar a
ferida com sabão de coco, tentar colocar o osso de volta no lugar e improvisar
uma tipóia com o pano de prato. É claro, sem anestesia, porque isso é coisa de
rico.
Em vez de ficarem de mimimi com a falta de recursos, deviam era enxergar
nela uma oportunidade para revolucionar a medicina nesses buracos de rato para
onde os cubanos serão enviados. Vou dar um exemplo. Meu primo e melhor amigo
Helder se formou em medicina há alguns anos. Ainda novo na profissão, topou se
sujeitar à aventura de deixar família e amigos para trás e ir atender na
cidadezinha de Ubaí, MG, um lugar tão pobre que lá falta até ar pro povo. Era de
se esperar que depois de alguns meses ele tentasse procurar trabalho numa
cidade melhor fornida de recursos, mas ele ainda não arredou o pé de lá, e já
são quase cinco anos de afastamento de casa.
Se podemos apontar pelo menos uma coisa positiva dos 12 anos de governo
petista, é que eles têm conseguido romper a aura mística que as profissões de
renome possuem. Antes de organizar mutirões para cobrar do governo melhores
aparelhagem e salários para funcionários do hospital, é preciso mudar a
filosofia de trabalho e parar de priorizar a doença em detrimento da cura e da
saúde. Claro que esse improviso com médicos estrangeiros não pode e não precisa
durar para sempre, mas antes precisar de um médico que de um agente funerário
gringo.
*Designer e escritor. Sites:
HTTP://www.facebook.com/fernandoyanmar.narcisohttp://cyberyanmar.deviantart.com
HTTP://www.facebook.com/terradeexcluidos
Só rindo, pela sua abordagem, mas o caso é sério demais.
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