quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O lugar onde nascem as histórias

* Por Cecília Prada

Sabe o ponto onde nascem as histórias? Venha, vou lhe mostrar. Suba no caixotinho, a janela é meio alta, agora estique o pescoço. Está vendo o matinho cerrado lá longe, bem no final da praia? Pois é. Espere um pouco, com o binóculo é mais fácil. Também, não é coisa assim de todo-dia, não. Nem de toda-noite, melhor dizer. Porque isso todo mundo sabe, que as histórias aparecem mais é de noite, mesmo. Que são tímidas, virginais, às vezes se envergonham – ficam muito tempo sem aparecer. Porque, vou lhe dizer : elas têm de sair nuas, do bosque, e começarem a correr por aí, buscando abrigo, se entremostrando lampejando zunindo às vezes que nem abelhas, se fazendo de doidinhas (na verdade são muito sábias).

Umas, de tão arredias e envergonhadas, correm logo para o mar, se agasalhando de espuma e desaparecendo. Outras, tentadas – pois a paisagem da terra é mais variada – se espalham, exibidas, em corpos que parecem humanos, nos namorando de longe.

De perto, quando as agarramos, o unto de suas carnes etéreas enerva nossas mãos, nos desespera quase. Escorregadias como peixe – constatamos. Frágeis, matéria de sonhos, só. Mas se conseguimos, só com muita garra e violência, arrastando-as pelos cabelos, trazê-las, mantê-las no nosso abrigo....

Podem se afeiçoar logo,morar anos conosco, impertinentes até, obsessivas, – exigentes , espinhosas, algumas. Algumas, só. Porque é claro : se as procuramos tanto, com tanto esforço e cuidado para trazê-las e guarda-las, é porque valem a pena, as bichinhas, maioria delas. É só ter paciência, muitos pires de leite à disposição, roupagem fina e bonita, isso sim, para vesti-las, fazê-las crescer capazes de conversar conosco a noite toda sem que nos cansemos nem um pouco. Faceiras, multifacetadas, cheias de truques nos seduzindo – até o ato final enfim conseguido, a transposição que fazemos em laborioso parto, delas – tênue material de sonho – para o papel ou a tela do micro, com o conseqüente orgástico gemido prolongado em enlace perfeito até , arfantes, nos darmos por satisfeitos, colocando na linha derradeira o costumeiro

* Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem cinco livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP), onde termina um romance autobiográfico.


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