domingo, 22 de setembro de 2013

A ordem do governador

* Por Paulo Setúbal

- Não pode ser, senhor General! Os Lemes estão a abusar do coração de V. Excelência. João Leme, Regente de Cuiabá? Mas isso é um desaforo! V. Excelência de certo não há de tolerar que dois caboclos, como aqueles, tenham o atrevimento de pretender semelhante posto.

Sebastião do Rego tem o olhar incendiado. As palavras vêm-lhe torrenciosas. O gesto é incisivo e duro.
- Lourenço Leme feito Provedor-Mor dos Quintos Reais! João Leme feito Regente-Mor das minas de Cuiabá! Mas estes dois homens, com tamanho poderio, a que coisas não se atreverão? Não haverá mais força que possa refreá-los. Nem o Rei, nem V. Excelência, nem ninguém...

Rodrigo César:
- Mas eu tenho as mãos atadas, Sebastião do Rego! Os Lemes são perigosos. Têm com eles grande séquito de apaniguados. Que posso eu lá fazer? Onde vou eu achar soldados? Onde forças bastantes para castigar as insolências dos dois régulos?
- Senhor General! Um velho avô de V. Excelência, em Cafim, quando atacou e destroçou, sozinho, seis fustes de inimigos, o fez com tanta bravura que D. Manuel, de contente, o recebeu de braços abertos: "D. Vasco, bem se vê que sois César; isso é feito de César!" V. Excelência, que tem os seis fustes no seu brasão d'armas, por certo não vai hesitar diante de dois criminosos.

O Governador franze o cenho. Fixa dois olhos ásperos no fuinha. Mas o fuinha, que joga a sua grande cartada, fixa também, sem tremer, dois olhos ásperos no Governador. E rompe com firmeza:
- Quer V. Excelência, senhor General, dar cabo, definitivamente, dos dois régulos? Pois tem V. Excelência uma só coisa a fazer: ordenar. Ordene, General! Eu executarei, de maneira cabal as ordens de V. Excelência.

E fechando o punho, com decisão:
- À fé de Sebastião do Rego, senhor Governador: eu liquidarei os dois facínoras!
Aquela convicção, assim violenta, impressiona fundo o Governador. Rodrigo César fita o confidente nos olhos. E com espanto:
- Vosmecê é capaz de liquidar os Lemes, sô Sebastião do Rego?
- Afirmo-o sob palavra de honra!
Rodrigo César começa a passear pela sala. Não diz palavra. Vai e vem, pensativo. Eis que estaca de repente:
- Diabo de situação a minha, Sebastião do Rego! Eu, depois desses cargos que dei aos Lemes, eu não posso, decentemente, mandar prendê-los sem um motivo aceitável.
- Está claro, Excelência! Mas quem mandará prendê-los não será o General Rodrigo César: será o juiz. Eu arranjo um mandado do Desembarga dor.
- Não é fácil! Para vosmecê arranjar um mandado, é preciso o processo. E onde está o processo. Vosmecê sabe que os Lemes saíram fugidos e, por isso, ainda não têm as culpas formadas. O processo deles requer tempo. Não é coisa que se faça assim do pé para a mão.
- É coisa que se faz numa noite, senhor General! O desembargador Godinho Manso - fique V. Excelência sossegado! - fará o processo, dará o mandado, irá em pessoa capturar os dois régulos!
- ?
- Sim, senhor General: eu garanto o Desembargador, garanto o processo garanto o mandado, garanto o filho de Fernandes de Abreu...
Rodrigo César arregala os olhos, surpreso:
- Quê? O filho de Fernandes de Abreu?
- Pois não! Mandei-o já buscar às Gerais. Está aí, à mão, na minha casa. Ele jura a queixa, hoje. Ouvem-se meia dúzia de bonifrates. Com isso, V. Excelência vê, temos, num abrir e fechar dolhos, ordem de prisão e forca!

Estava tudo ao talho de foice. Tudo velhaca mente preparado. Bastava uma palavra do Governador, bastava um gesto, e os Lemes estariam perdidos.

Rodrigo César não vacila:
- Nesse caso, Sebastião do Rego, tem vosmecê a ordem: trate da prisão dos Lemes! Nada mais de temperilhos. É preciso, sim senhor, acabar com a arrogância dos dois paulistas. Agora dê no que der, vamos cortar o mal pela raiz: prisão e forca!

Os olhos do fuinha acendem-se. Perpassa neles febrento clarão. Prisão e forca! E, com a prisão e a forca, doze canastras de Ouro! Doze...

Sebastião do Rego:
- Vossa Senhoria conhece este moço?

O desembargador Godinho Manso encara no moço.
- Não! Não o conheço.
- Pois é filho de Fernandes de Abreu. Aquele que fugiu para as Gerais...
- Que diz vosmecê?

Godinho Manso levanta-se, chocado. Encara de novo no moço.
- É este o filho do velho Abreu, compadre de João Cabral, que os Lemes assassinaram?
- Exatamente!

E Sebastião do Rego, diante do Juiz, com estudada solenidade:
- Antônio de Abreu, Senhor Doutor Desembargador, está aqui, na presença de Vossa Senhoria, como juiz e pai que é, para pedir justiça. Ele veio dar queixa de crime contra João Leme e Lourenço Leme, autores da morte de seu pai.

O Desembargador cai das nuvens. Não pode compreender o que ouve. Bota em Sebastião do Rego dois olhos que fulguram, interrogativos.
- Queixa contra o Provedor-Mor dos Quintos de el-Rei? Queixa contra O Regente-Mor das minas de Cuiabá? Vosmecê, Sebastião do Rego, fala sério ou está a caçoar?
- Falo sério, Senhor Desembargador! Vossa Senhoria queira escutar-me.
Vira-se para Antônio de Abreu:
- Espere um pouco na outra sala, Antônio. Eu preciso conversar a sós com o Doutor Desembargador.

Sebastião do Rego conversa a sós com o Desembargador. Diz claro, cruamente claro, ao que vem. Nada de subterfúgios, nem de palavras encobertas. Aquilo, para Sebastião do Rego, é um negócio puro e simples. 

E ele discute o caso como um negócio. O trapaceiro sabia bem com quem tratava. Conhecia de perto o quilate do Desembargador. Ah, se conhecia! Para pintá-lo ao vivo, é inútil buscar palavras. Basta uma carta dele Carta escrita a Rodrigo César, ao fim dum desaguisado, que diz, numa pincelada incisiva, do teor do homem e da altanaria do Juiz.

Ei-la:

"Exmo. Snr. Rodrigo Cezar de Menezez
Meu Amo e Senhor.
O dia de hoje é de confissão; e, se quem a faz com verdadeiro pesar, se restitue logo a graça, eu espero ver-me cedo na de V. Excia; pois, com toda a sinceridade, confesso que me pesa sumamente o haver ofendido. Para Deus um - tibi soli peccavi - é o bastante; para V. Excia. o mesmo ha de bastar-me. Já nao fa'la mais o ouvidor, mas sim a creatura de V. Excia., cujos pés, com o mais profundo respeito, beija..." (22).

Naquela noite, em casa do Desembargador, o filho de Rodrigues de Abreu jurou queixa de morte contra os Lemes. Em torno dessa queixa, vieram à tona, um por um, os crimes que "a lima do tempo havia gasto". Fez-se a devassa em sigilo. Reviveram-se todas as velhas culpas dos régulos. Desentulharam-se todos os velhos agravos. A prova resultou farta. A matéria fácil. O mandado de prisão tombou com naturalidade da pena do juiz. Foi tudo um relâmpago.

Certa manhã, por entre a curiosidade do povo, o senhor desembargador, Godinho Manso, em diligência do foro, abala em pessoa para Itú. Vai com o Regimento de São Paulo. Leva consigo - estranho acontecimento! - o Sargento-Mor Sebastião do Rego. Leva também o índio Cavichí. Que é aquilo? O povo acorre, com alvoroço, passar o inesperado séquito. Mas ninguém suspeita, nem de leve, que vai ali, no cintão de couro de Sebastião do Rego, um papel extraordinário, papel secreto, com a rubrica do General Rodrigo César. O estranho papel contém esta ordem para o comandante das ordenanças de Itú:

"Caso se faça mister pôr cerco na casa onde se acham os regulos João Leme e Lourenço Leme, faça-o em sigilo, de sorte que nem entre nem saia pessoa alguma. Espero que desempenhe as obrigações do emprego que occupa de modo que tenha eu de agradecer-lhe" (23).

(Capítulo do livro “Os irmãos Leme”).

* Poeta e escritor paulista, nascido em Tatuí, membro da Academioa Brasileira de Letrass.


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