quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O homem que escapuliu do gráfico

* Por Mara Narciso

Existem pessoas tão estranhas, tão inabituais, que saem do gráfico, dando verdadeiros pulos para fora. Bernardo é desse tipo atípico. Funcionário público, moreno bonito e de voz sedutora, agora com 56 anos, reclama estar acima do peso, e ter uma circunferência abdominal vergonhosa. Quer emagrecer, e volta e meia consegue seu intento, mas, por pirraça, de vez em quando o ponteiro da balança volta a subir. Trouxe a horta para a mesa e visita o pomar algumas vezes ao dia. Tem intimidade com o sol que banha seu corpo na caminhada. Bem informado, lê muito, e não desiste de nada que começa.

Há 18 anos, Bernardo achou na sarjeta, drogada e prostituída uma jovem negra. Seu nome era Laura. Levou-a para casa, lavou sua imundície exterior, instalou-a em um dos dois quartos da sua modesta casa, e abriu sua vida e seu coração para ela. Com amor, tentava, através do amparo, reparar também a porção interior. Desde o começo, a relação foi de pai para filha.

Laura, naquele momento sem droga, gostou do pouso, e disse querer sair do buraco onde se enfiara. Bernardo sabia quão furado era esse discurso, mas fingia acreditar. Laura ficava limpa um tempo, mas era vencida pela imposição orgânica de se drogar. Volta e meia sumia de casa, para ser mais uma vez e outra, e outra, resgatada, imunda. Entrava em brigas, furtava, roubava, era presa e desencarcerada pelo pai adotivo, que, generosamente lhe dava novamente um lar, consideração e respeito e nunca lhe fechou as portas, nem diante dos seus mais loucos desatinos. Trazida praticamente nos braços, era deixada numa cadeira sob o chuveiro, e muitas vezes o funcionário teve de dar-lhe banho, curar suas feridas e infecções, fruto da vida de rua que tinha.

De orientação homossexual, Bernardo foi aos poucos se afastando, abafando suas buscas por sexo e companhia, especialmente nos períodos em que sua filha engravidava e, descuidada, acabava deixando um filho depois do outro para ele cuidar. Ele os criava, cada um deles de pai desconhecido, resultado da prostituição. Louca pela droga, Laura perdia as contas com os anticoncepcionais ou se esquecia do preservativo. Bernardo, quando ela estava consciente, fazia a habitual preleção que todos os pais lúcidos fazem, mas é desnecessário dizer que era inútil.

Criou os meninos como netos, dando-lhes conforto material e carinho. São sua família, seus amores, sua razão para voltar para casa. Bons meninos, amorosos e responsáveis, lhe dão alegria. São dois netos e uma neta. Esta se inicia na profissão de modelo. É alta, exótica, e chama a atenção. O avô dá-lhe o suporte necessário. O outro estuda muito, quer fazer curso superior, e tudo indica que alcançará seu intento. O mais novo ainda é uma criança que pula no colo do avô e enche-lhe de beijos. Na gravidez, Laura conseguiu, de alguma maneira, ficar sem as drogas, ou quase, resultado dos insistentes pedidos e do amor de seu pai, que implorava por isso.

A filha afunda mais e mais uma vez, e quando vem à tona para respirar, toma um banho de civilidade, cuida de si, da casa e dos filhos por um tempo. Então, quando se espera que uma rotina se estabeleça, desaparece nas trevas. Foi esterilizada após o terceiro filho. O pai conseguiu que ligassem as suas trompas.

Além do amor de pai e avô, nada acontece de forma natural nessa família conturbada. Mas a vida de penitente avança. E assim, de sustos em sustos, entremeados com alegrias, esse homem de coração imenso vai vivendo de forma intensa. A sua vida não corre devagar, dá saltos. O que sentiu e produziu, entregou aos outros, aos desamparados, os que nada tinham. E por cima do conjunto de ações um maço de amor, a ponto de esquecer-se de si. Ninguém tem notícia desse tipo de gente. Não dá IBOPE. Ficam esquecidos pelo caminho. Num tempo em que apenas a crueldade ganha espaço, quem quer saber que existe pessoa boa assim? Verdadeiramente estranha. No lugar de puxar tudo para si, distribui irmamente. Quem entende isso?

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   

2 comentários:

  1. Que triste, e que verdadeiro. Vivemos um tempo em que a bondade e o amor desinteressado chegam a ser vistos com desconfiança. Uma descabida inversão de valores. Excelente, Mara. Abraços.

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    1. O normal é a pessoa estender uma mão com a outra aberta, por detrás. Ajuda desinteressada, só mesmo na ficção, mas esse homem é real. Obrigada pela passagem e a atenção do comentário, Marcelo.

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