quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Ciclo

Por Cida Pedrosa

Naquela casa todos já nasciam velhos. Da hora do parto à primeira labuta o tempo era curto. Com a menina não foi diferente. Mesmo sendo a filha mais nova, de quatorze irmãos, o destino já estava traçado antes da lua pousar no seu rosto pela primeira vez. Duas irmãs mais velhas haviam casado e faltavam mãos femininas para as obrigações do dia. Começou jogando milho para as galinhas, varrendo o galinheiro, tangendo as cabras para o chiqueiro, aboiando os bezerros rumo à roça, lavando as xícaras da merenda e auxiliando irmãs a encherem potes tão grandes quanto as jarras de Cleópatra. A única coisa que detestava era recolher os penicos pela manhã. Maldizia as vezes em que cada uma da casa acocorava-se sobre o urinol de ágate branco e enchia a noite de chiado e charco. No mais, habituou-se logo cedo a brincar com o trabalho e a ver o pôr-do-sol como recompensa.

Naquela casa todos já nasciam velhos e nem o medo era permitido. À noite, quando as pernas se abastavam na rede e olhos aflitos seguiam as figuras que a luz das frestas desenhava na parede, apenas o murmúrio do vento e o mugir das vacas eram ouvidos. Na garganta da menina nenhum gesto se fazia. O grito de vá dormir, deixe de besteira era mais assustador que os fantasmas postos na parede. Neste tempo aprendeu a levantar-se, correr para o terreiro e fazer xixi sob os raios do luar. O medo passava e evitava o nojo de acocorar-se sobre o ágate branco, quase cheio.

Naquela casa todos já nasciam velhos. Daí o espanto da menina quando ouviu pela primeira vez a mãe dizer: saia já daqui, pois isto não é coisa para criança escutar. Ficou parada um tempão e foi preciso sentir o beliscão para fugir na carreira. Desde então aprendeu a ouvir murmúrios e a decifrar os mistérios por entre portas e paredes. Descobriu que as mulheres parem iguais às vacas, os homens cruzam igual aos touros e que existem certos dias do mês em que as irmãs lavam paninhos lá para as bandas do curral.

Naquela casa todos já nasciam velhos. A menina não viu quando surgiram peitos, sorriu o rapaz, pariu os filhos, perdeu o marido e muito menos quando ao pôr-do-sol um rastro branco brilhou em seus cabelos.

* Poetisa e vereadora no Recife


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