A execração pública nossa
de todos os dias
* Por Mara Narciso
Nascida numa casa a lado da igreja, a menina desde cedo aprendeu a
importância da religião em sua vida. Pequenininha frequentava a missa,
crescendo dentro da fé. Gostava das celebrações católicas, e em casa, colocava
as bonecas arrumadas em frente a um altar e fingia-se de padre, rezando de
mentirinha no seu mundo encantado. Adulta, continuou frequentando a mesma
igreja, e já madura passou a fazer isso todos os dias. Era pessoa comum, sem
grandes feitos ou ambições. Levava sua vidinha medíocre de forma séria e
trabalhadora. Como boa fiel costumava se confessar todas as semanas, rezava sua
penitência, para na semana seguinte chegar com novos pecados. Uma vez, numa das
campanhas anuais do agasalho, que participava ativamente, o padre a assediou.
Fez-se de desentendida, mas a coisa continuou. Falou algumas palavras ásperas,
e safou-se do constrangimento temporariamente, mudando-se de paróquia. Um dia,
o mesmo padre que a assediara, foi celebrar missa nessa outra igreja. Vendo-a
entre os fieis, não disse o seu nome, mas na hora do sermão apontou em sua
direção e contou a todos o que ela dissera em confissão, acusando-a e
invertendo os papéis. Um calor invadiu seu corpo, uma vermelhidão se instalou
em seu rosto, enquanto um suor a cobria de cima abaixo. Chorando, deixou a nave
correndo. Não sabendo o que fazer, e recebendo apenas parcos gestos de
solidariedade, viu que a maioria a olhou de banda e manteve a desconfiança.
Procurou o bispo, contou a sua história, mas a autoridade não lhe deu crédito.
Depois de algum tempo, acuada e sem alternativa, voltou cabisbaixa para o
templo ao lado de sua casa. Lá permanecia impune o seu algoz.
Os brasileiros conhecem a história de Ibsen Pinheiro (1993), de Alceni
Guerra (1992), e da Escola Base de São Paulo (1994). Destrinchando: Ibsen
Pinheiro foi vítima do mau jornalismo, sendo martirizado e também cassado com a
acusação de irregularidades no Orçamento da União, episódio conhecido como “Os
anões do Orçamento”. Na acusação contra ele, mil virou um milhão na imprensa.
Onze anos depois provou ser inocente, mas quem era cotado até para a
Presidência da República, após oito anos sem direitos políticos, não se elegeu
deputado, voltando à ribalta como vereador. Por sua vez, Alceni Guerra,
Ministro da Saúde do Governo Collor, foi acusado de superfaturamento na compra
de bicicletas, capas de chuva e filtros de água. Saiu pelas portas dos fundos,
acossado pela imprensa e a população com sua cabeça feita por ela. As manchetes
eram mais importantes do que as provas. Não confirmaram a acusação. Ficou
emblemática a foto do ex-ministro, junto com seu filho, sentado no meio fio de
alguma via de Brasília ao lado de uma bicicleta. O drama satânico da Escola
Base de São Paulo foi assunto para muitas semanas. Os donos foram acusados de
abuso sexual de criancinhas de quatro anos. Houve caça às bruxas, com pichações
nas paredes, palavras de ordem vindas de uma população furiosa, perseguições
corpo a corpo, e praticamente salgamento do local (desagravo usado no tempo de
Tiradentes). Sem provas, as verdadeiras vítimas foram inocentadas, mas para um
estrago deste porte não tem remendo.
Os meninos de ontem e de hoje, quando grandes sonhadores, libertam-se
nos seus sonhos e viajam na nave do pensamento. Aquele menino imaginativo,
quando a mãe reclamava dos seus pés sujos, na hora de dormir, falava que tinha
pisado no lado escuro da lua. Lá havia uma terra molhada, e assim sujara os pés.
É que, após o banho da tarde, inquieto, corria rua afora, e descalço, os sujava
novamente. A sola preta mostrava apenas a sujeira, porém, nem de longe sugeria
por onde andara o menino. Ah, que saudade dessas andanças boas! Adulto, e com
coragem para o trabalho árduo, fez sucesso, mas um dia seu mundo desmoronou.
Nem santo nem demônio, o homem que viu tudo se perder, mantém disposição para o
trabalho, espírito solidário e um amor a flor da pele, suas grandes
características. Preguiça não faz parte do seu roteiro, mas o mundo dos maus
negócios tem seus segredos e a sua face escura, aquela que está além dos nossos
olhos. Teias contrárias emaranham as boas intenções, e o sólido vai a pique.
Quem entende a fugacidade das nuvens econômicas? Gestos corretos, em busca de
solução são vistos com impaciência, e o culpado, ninguém duvida, foi aquele que
está à frente e que aparentemente causou o prejuízo. Para este, a sociedade
reserva o esfolamento em vida. Condescendência é palavra rara numa realidade
cheia de números e intolerâncias.
A condenação apriorística, o julgamento unilateral, apesar dos alertas,
levam a aberrações bem conhecidas dos brasileiros. Enquanto casos mostram que o
crime compensa, por outro lado a coleção de injustiças aumenta a cada dia. Que
este rol não se vire contra quem hoje joga pedras. É preciso intensificar o
olhar crítico e não se deixar levar pelo óbvio. Como toda generalização e
unanimidade são burras - obrigada, Nelson Rodrigues-, o engano coletivo também
pode ser. Assim como a lua, a Justiça tem seu lado escuro.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Muito bom este seu artigo Mara! trazendo à baila estes episódios, alguns já até esquecidos, para nosso inconformismo. Como bem definiu (mencionando Nelson Rodrigues) o engano coletivo também é "burro". Há uma citação latina que diz: "Error comunis facit jus." O erro comum torna-se lei. E enquanto vivermos vamos assistir ainda muitos desses casos repulsivos e claro: vexatórios.
ResponderExcluirSim, Edir. Deveríamos ser mais humanos em nossos julgamentos. Querendo evitar culpados que não condenados, temos pressa em condenar sem provas. Agradecida pelo comentário.
ExcluirMara, seu texto é primoroso em todos os sentidos, tanto pela oportunidade do tema, quanto pela habilidade e competência com que tratou de um assunto tão difícil e polêmico. As pessoas são demasiadamente afoitas em julgar, baseadas, apenas, em versões, nem sempre confiáveis e muito menos verdadeiras. Não raro, não passam de meras meias verdades, que são piores do que a mentira explícita, dada sua verossimilhança. É comum confundir-se “opinião pública” com “opinião publicada”. Como jornalista, com quase meio século de atividade, sei, de sobejo, que nem tudo o que os jornais publicam, ou que as emissoras de rádio e televisão veiculam, é a lídima expressão da verdade. Há muitos interesses das empresas envolvidos, nem sempre legítimos ou éticos e a tal da isenção, em jornalismo, que deveria ser norma, mas não é, é mera balela. Você lembrou muito bem o caso da Escola de Base, cujos proprietários sofreram “linchamento moral” em público e cuja inocência foi comprovada tempos depois. A versão dando conta de que seriam responsáveis pelo alegado abuso sexual ao menino de quatro anos foi divulgada com estardalhaço, em escandalosas manchetes. A comprovação da inocência dos proprietários, todavia, mereceu, no máximo, dos poucos jornais que tiveram a decência de se retratar, meras notinhas de rodapé. Parabéns, mais uma vez, Mara, por seu texto brilhante e sensato, que deveria ser lido e refletido por todos os que lidam com comunicação.
ResponderExcluirTemos essa mania de ver o suspeito como julgado e condenado e escolhemos as mais duras penas para ele. Num tempo do politicamente correto, em que dizemos querer dar chance igual a todos, e pedimos por ela para nós, a quantos mesmo estamos dispostos a dar uma segunda chance? Você aceitaria um ex-presidiário para trabalhar com você? E por que não? Vejo que não somos nada bonzinhos. Obrigada Pedro, pela sua análise num comentário que tanto acrescentou ao texto.
ExcluirUma de responsabilidade jornalística em forma de crônica. Gostei muito, Mara. Abraços.
ResponderExcluirÉ preciso avaliar com calma, em cima de provas. E não é o que temos visto. Muitos não investigam, não apuram. Obrigada, Marcelo, pela passagem e comentário.
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