Qualidade que compensa
a quantidade
A quantidade de
determinada produção intelectual nem sempre se casa com a desejável qualidade.
Alguns diriam “nunca”. Não chego a tanto. Seria pueril generalização. O ideal é
que ambas, quantidade e qualidade, andem juntas, até porque, a prática contínua
e ininterrupta, ao menos em teoria, tende a conduzir à proximidade da
perfeição, já que esta é, no meu entender, inatingível. Neste caso, refiro-me,
especificamente a escritores e ao seu legado à posteridade. Há os que escrevem,
e publicam, dezenas e dezenas de livros que, no entanto, passados pelo rigoroso
crivo da crítica, “peneirados e coados”, apresentam resultado pífio em termos
qualitativos. Em outras palavras, são ruins. Não têm conteúdo. São repetitivos
e óbvios. Não passam de coleções de clichês, que nada acrescentam à Literatura.
Em contrapartida, há os
que escrevem, e publicam, poucos livros (às vezes, apenas, um único). Todavia,
essa obra solitária, quando o caso, é primorosa e não raro genial. É verdade
que não se trata de nenhuma regra. Tudo corre ao sabor do acaso. Há escritores
de extensíssima bibliografia e nada do que escrevem pode ser considerado
medíocre ou minimamente contestável. São os que conseguem conciliar quantidade
com qualidade. Ademais, há, também, os que escrevem pouco, mas tão mal, que
seria melhor que não escrevessem nada. Pelo menos preservariam certo prestígio,
manteriam intacta a dignidade. Não se exporiam, com tamanha facilidade, ao ridículo
e à execração pública.
David Salles perpetuou,
em livros, relativamente pouca coisa, se levarmos em conta sua erudição e preparo
intelectual. Todavia, tudo o que publicou, rigorosamente tudo, é de uma
qualidade à prova de reparos. E, no que se refere à ficção, sua bibliografia é
ainda mais escassa. Mesmo assim, é tido, havido e plenamente reconhecido, como
mestre, como referencial, como paradigma no que se refere à Literatura
ficcional, e não somente baiana, foco desta série de estudos, mas brasileira (e,
quiçá, mundial). Dos onze livros seus, que foram publicados, a grande maioria é
constituída por teses acadêmicas, dissertações e crítica literária. Apenas
quatro fogem desse padrão. E, assim mesmo, dois são uma espécie de antologia: “Reunião”
(junto com Sônia Coutinho, João Ubaldo Ribeiro e Noênio Spínola) e “Histórias
da Bahia” (Edições GDR, 1963), que tomei como referência para esta série de
estudos, em que é, apenas, um dos 23 escritores selecionados. Os outros dois
livros de ficção de David Salles são: “A traiçoeira invenção da noite” (contos)
e “A coragem pela metade” (novela).
Todavia, se for
considerada sua produção jornalística, esse quadro muda radicalmente. A
quantidade de textos que publicou em jornais da Bahia, de São Paulo e de Minas
é das mais copiosas e relevantes. Reunidos em livro, comporiam não apenas um,
ou dois, ou cinco, ou dez volumes, mas (sem exagero) perfariam toda uma
biblioteca e das mais copiosas. É verdade que a maioria dessa produção é
composta de crítica literária. Mas David Salles publicou, também, dezenas e
dezenas de contos em jornais e revistas. E se essas tantas histórias fossem
reunidas em livros, engrossariam muito sua bibliografia no que se refere à
ficção. Não foram. Uma pena. Quem saiu perdendo, como sempre, foi o leitor. David
se orgulhava da condição de jornalista profissional. Chegou, inclusive, a ser
editor-chefe de uma revista de muito prestígio e reconhecido valor temático,,
no caso, “Ângulos”.
Aliás, casos, como o
dele, são bastante comuns. Conheço uma infinidade deles. Convivi com
jornalistas geniais, que publicaram, por anos a fio, não raro diariamente, textos
e mais textos brilhantes e, quando deixaram a atividade, por demissão ou por
aposentadoria, foram esquecidos de vez. Só encontro uma palavra para definir
esse esquecimento: sacanagem! Mas o jornal tem vida curta, “Nasce” na madrugada
e, já ao cair da tarde, perde a atualidade. Sem função, é posto de lado. Serve
para outras tantas coisas, quase nunca nobres, que não a leitura e a informação.
Isso só não acontece com leitores que cultivem o saudável hábito de organizar e
manter hemerotecas. Para quem não sabe do que se trata, esclareço que essa é a palavra
que designa uma coleção de recortes de jornais. Conheço poucos que têm esse
inteligente e econômico hábito.
Guardadas as devidas
proporções qualitativas, ocorre comigo mais ou menos o que ocorreu com David
Salles. Minha produção jornalística foi absurdamente alta. Só de comentários de
política internacional, publiquei-os, todos os dias, sem nenhuma interrupção,
nem aos sábados, domingos e feriados, ao longo de quinze anos e meio
consecutivamente – isso sem falar em crônicas, ensaios, contos e até poemas. Os
leitores do “Diário do Povo” e do “Correio Popular” são testemunhas.
Multipliquem quinze anos por 365 dias e terão uma idéia de a quanto chega essa
quantidade de artigos que escrevi e publiquei na imprensa. Nem eu acredito que
escrevi tanto. Todavia... livros só consegui publicar quatro. Quem não foi meu
leitor de jornal e que quiser avaliar minha obra, apenas, pelos exemplares impressos
e publicados, ficará certamente decepcionado. “Foi só isso o que esse sujeito
escreveu?!”, poderá dizer (certamente dirá), pondo em dúvida a criatividade e a
produtividade deste “escrevinhador”. O mesmo ocorre com David Salles.
O conto com que
participa da antologia “Histórias da Bahia”, intitulado “Tanque novo”, dá conta
da qualidade do seu texto ficcional. Nessa história ele faz algo que jamais
consegui. Coloca-se na condição de mulher (da personagem Joana), apaixonada por
Otávio, com o qual faz o conhecido joguinho de sedução que via de regra
antecede qualquer relacionamento amoroso. E faz isso com tamanha verossimilhança,
expressa tão bem a psicologia feminina, que chegamos a duvidar que o conto foi
escrito por um homem. Reitero, tentei isso várias vezes e nunca consegui.
Infelizmente, não consigo, por mais que tente, raciocinar como mulher.
Como é do meu hábito,
ou seja, sem dar indicação do que trata o enredo (para não estragar a surpresa
dos que eventualmente vierem a ler a história), partilho, com vocês, o trecho
com que David Salles encerra o conto “Tanque Novo”:
“O caminho olha-a
silencioso nas casas pretas de barro batido, ela espia atrás. Lá o tanque, lá
os armazéns, lá o fumo para escolher, lá as prensas. Lá as prensas. Lá, ela
sabe, a rua comprida dando vista para o jardim.
As flores lilases do
Tanque Novo, flor de bambu d’água, estão imóveis. São tiradas no tempo da festa
de Nossa Senhora da Conceição para a noite, na novena, em que a igreja é
ornamentada pelas mulheres dos armazéns de fumo. Chega agora novamente a época
e o tanque outra vez está coberto de flores, as mulheres todas retirando-as
para o altar mor ficar lilás. Joana precisava de Otávio para ajudar seu
esforço, precisava, abaixada, sente-se tão cansada (ela acha) e cospe de lado,
cospe de lado, tão cansada...
Vamos beber água
Lá no Tanque Novo
Vamos beber água, minha
santa,
Que o tanque não tem
fim”
Não entenderam nada?
Não faz mal! Leiam o conto. Leiam “Histórias da Bahia”, antologia à disposição
dos interessados em qualquer sebo, dos tantos que contam com sites na internet.
Leiam que vocês irão conhecer magníficos ficcionistas baianos, entre os quais o
genial David Salles se destaca. Leiam que, com certeza, chegarão à mesma
conclusão a que cheguei, de que qualidade importa muito mais do que quantidade.
Mas quem conseguir conciliar as duas coisas, será tanto melhor, sem dúvida.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Ontem foi empossado um médico, Dr. Manoel Fernandes na Academia Montesclarense de Letras, a qual pretendo um dia pertencer. Ele escreveu um livro, "A menina do quarto escuro" que começo a ler, e foi alçado a imortal. Os intelectuais da cidade ficaram encantados com o livro. Depois eu conto mais.
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