sexta-feira, 1 de abril de 2011



Racine, o amigo dos artistas


* Por Urariano Mota


No Recife, não procurem saber quem é Racine na enciclopédia. Nem de longe prossigam em busca de um teatrólogo, poeta, historiador, um tal de Jean Racine, que foi um dos maiores dramaturgos da França. Não. No Recife, quem procura por Racine, e está em crise de ouvidos, garganta ou nariz, ou os três, de uma só vez, derrubados, logo é informado que ficará melhor com o médico Racine Vieira de Cerqueira. E lhe será dito, em bom recifês, que Racine é o “tampa”, o que significa, o bambambã, o cara na otorrinolaringologia, sem qualquer otorrino megalomania.

Mas se, ao contrário, a pessoa for paciente de outro mal, aquele da melomania, dos viciados e amantes de música, que não podem viver sem ouvir bons músicos, ótimos violonistas, então deve procurar por Racine, um bamba do violão, que por coincidência é quase a mesma pessoa, mas só não é a mesma porque está fora do consultório, e conversa sobre tudo de músicos, menos de ouvidos ou garganta inflamados. É espantoso. Pensem em Beto do Bandolim, Lalão, Bozó, Geraldo Azevedo, Henrique Annes, Marco César, pensem em qualquer constelação das melhores violas, cavaquinhos, bandolins e violões do Recife. Pensem. Pensaram? Todos eles passam por Racine. Vale dizer: todos passam pela casa de Racine.

Lembro de um domingo de carnaval em que ele reuniu a melhor e maior gangue de feras do Recife para confraternizar com Luís Nassif. Fomos todos recebidos como príncipes na sua casa, no seu apartamento amplo, que para a minha ignorância eram três: o de baixo, o de cima, e o mais alto, com direito a piscina. Lá, no piso de cima, entre uísques muitos, que eu vi os outros beberem, que eu vi até onde pude vê-los, aconteceram coisas inacreditáveis. Entre as muitas, estava Geraldo Azevedo, acompanhado por sua linda filha, calado e em silêncio, por mais de duas horas, esperando a sua vez de tocar. Eu bebia e perguntava à minha mulher: “aquele é mesmo Geraldo Azevedo?” Ela me respondia: “Fale baixo. Você não pode beber, que inconveniência”. Mas era mesmo Geraldo, podemos ver, que na sua vez deu um show imperdível, gratuito, de pura camaradagem, a cantar a Menina do Lido, Dia Branco, quando fevereiro chegar...

Em outro lugar estava Samir Abou Hana, louco para cantar Nelson Gonçalves, o que lhe foi afinal concedido, porque a casa era democrática. Mas o mais espantoso não era Samir cantando Nelson à sua maneira de cantar. O espantoso era um senhor que, a seu lado, ficava a lhe soprar os versos, enquanto Samir esticava com voz de baixo, sem extensão, coitado, mas esticava a frase, à espera do que o ponto de teatro lhe soprasse. Quem seria o bom homem que cobria os vagos de memória de Samir? Nada mais, nada menos que Doutor Agrimar, dono de laboratórios de imagens em Pernambuco.

Em outro ponto, em outro lugar depois estava Lalão, a andar impaciente pela grande sala, com um cigarro no bico, com seu físico nada suave de atleta estivador do cais. Eu lhe perguntei, pois eu estava muito inconveniente: “Vai tocar, Lalão?”. E ele: “Se me chamarem, eu vou”. E seus dedos de tarado por cordas agitavam-se. Então fui ao dono da casa e, com a maior das inconveniências, interrompendo-o no solo de violão que ele fazia como poucos, eu lhe murmurei que Lalão queria tocar. “Ah, certo”, ele respondeu. E, com superior educação, acabou o seu número e cedeu o próprio lugar para o estivador mais sublime do Recife. Para quê? Vocês conhecem a lenda do Uirapuru? Se conhecem, podem imaginar: Lalão, quando toca, toda a constelação de violonistas silencia a ouvi-lo. Na verdade, ouvi-los: porque ele dá um concerto de violonistas, sola e se acompanha ao mesmo tempo com uma velocidade e profusão de acordes tamanhos, que só sabemos existir um só violão porque estamos vendo-o. Ou vendo-os.

No fim, lá pro fim da noite, apareceram Marco César e Henrique Annes, e na sala de poucos resistentes ficaram a dialogar entre cordas, como se fossem meninos grandes com seus brinquedos favoritos, ou como adultos em comunhão a se confidenciarem histórias que antes não sabíamos. Que espetáculo! Henrique, o maior nome do violão hoje em Pernambuco, num brevíssimo intervalo olhava para um lado, para o outro, a saber se a sua mulher havia saído. Confirmado, bebia rápido, à caubói, uma dose larga de uísque. E com a garganta assim temperada, falava em voz alta: “eu não posso beber, por causa do remédio”. Isso com a cara mais séria e pura de menino do Brasil. Quem não virava cúmplice?

No fim da noite, a voltar para casa ainda em estado de êxtase, a repassar todas as minhas inconveniências, senti que a maior eu não fizera. Por que Racine é tão amado pelos músicos do Recife? Por que ele é a ponte para excelentes músicos da cidade? Será que é pela recepção, pela mesa farta e sem medidas, que ele tem um prazer imenso em participar? Talvez, mas só um pouquinho. Ou melhor, não. Ali estavam músicos que não precisavam estar, tocando de graça, quando poderiam ficar em descanso em casa até o próximo show. Então por quê? Seria porque Racine atende a preço módico, ou a preço nenhum os artistas, porque é do ramo e sabe que arte e grana nunca rimam nem se encontram? Talvez, mas só um pouquinho. Ou será, de modo mais simples, porque os artistas do Recife sabem que têm nele um igual, um amigo, para todas as horas, grandes e pequenas, boas e tristes ? Penso que é isso. Penso, mas não tenho a certeza.

Estou até hoje sem saber. Como me arrependo de não ter sido mais inconveniente. Na próxima, juro que ele não me escapa.


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

2 comentários:

  1. Que dia mais memorável você teve
    Urariano, ouvir Geraldo Azevedo
    é como estar nas nuvens.
    Racine deve ser feito de mel...só
    pode.
    Abraços

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  2. Sem querer temperar discórdia, já a incentivando, da próxima vez, dois conselhos: vá sem a esposa e faça todas as perguntas. Tenho um filho que, devido a impulsividade, faz todas as perguntas, e como se não bastasse, dá também todas as respostas. Não duvido de, caso lá estivesse, ficar de pé e aplaudir esses ícones todos, e mais ainda, aqui, em frente ao computador, também o faço, Urariano. Foi um deleite só.

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