domingo, 3 de abril de 2011



O primeiro


* Por Edmundo Pacheco


Terça-feira, 22 de Julho, 2017, indicava o velho calendário de papel, pendurado na parede do que antes deveria ter sido um apartamento de luxo. Uma velha foto desbotada de algo que teria sido um belo cavalo encimada pela propaganda de um supermercado ao lado de um esqueleto branco, do que fora uma criança, de uns 10 anos.

Eram estas as poucas evidências da vida que habitara aquele lugar fantasmagórico. Eric jamais se acostumaria com estas cenas. Empurrou a velha porta de madeira apodrecida e pedaços de concreto e aço, que obstruíam a passagem, caíram. Um rato, avermelhado e gordo, correu do monte de entulho e entrou numa fresta da parede. Eric olhou-o, e continuou a subir...

As eternas nuvens negras cobrindo o céu, noutros tempos, indicariam chuva. Hoje, ao contrário, era dia claro. “Poder-se-ia sair para ir à feira”, pensou, Eric, sorrindo. A repentina imagem da feira, o cheiro das frutas, da barraca de pastel, das pessoas carregando sacolas, escolhendo algo por comprar. E o vento marinho, gelado, fê-lo sentir-se vivo. Ironicamente vivo...

Olhando de cima do velho prédio semi-destruído, a visão que se tinha do antigo Rio de Janeiro era arrepiadora. A ex-cidade maravilhosa era hoje um amontoado de nada.

Ao fundo, um braço enfiado no morro, outro quase submerso nas águas do que fora a baía, o velho cristo redentor, marca registrada da cidade maravilhosa, era uma figura patética.

Prédios, casas, favelas, quase nada restara da antiga civilização. Nem Eric deveria ter restado. Mas restou... E se restou, deveria ter uma razão, um propósito. Era isso que pensava. Era isso que o impulsionava. Não fosse por esta certeza, há muito já teria desistido... Morrer teria sido um prêmio a que ele não tivera direito... Eric restara. Sobrevivera.

Era possível, apesar de pouco provável, que em alguma parte do velho planeta uma outra pessoa também tivesse restado, sobrevivido. E se existisse tal pessoa, Eric gostaria de encontrá-la. Gostava de pensar na possibilidade de que tal pessoa fosse uma mulher. Seria sua eva. Poderiam iniciar uma nova civilização. Reivindicar...

Que mais poderia desejar ele? Se bem que estivesse velho demais para pensar em sexo. Ou melhor, deveria estar velho demais, mas não estava. De alguma forma, o tempo parara para ele. Nos últimos cem anos, pouco mudara... Apenas os pêlos, que antes eram ralos e curtos, agora estavam longos, espessos e cobriam todo seu corpo...

Quando o fim chegou, Eric não fora perguntado se queria sobreviver. Teria respondido NÃO. Simplesmente sobreviveu.

Na época, tinha 17 anos e morava num pequeno vilarejo do interior do Paraná, próximo de Maringá. Pouco menos de 100 habitantes, a maioria moradores da zona rural. Apenas uns poucos, não mais que meia dúzia, habitavam o lugarejo ermo. Eram os donos do mercadinho, da máquina de arroz e outras casas comerciais. Eric crescera ali. Sem amigos, sem grandes aventuras.

Havia apenas um velho telefone que funcionava quando queria (e queria sempre quando não era necessário) e um único aparelho de televisão em toda a vila (na casa da chata dona Genoveva). O fim chegou primeiro pelo velho rádio da sala, que seu pai ouvia religiosamente, desde a revolução de 64.

O céu escurecera, adoeceram e morreram todos. Aos poucos. Um após o outro. Os primeiros eram enterrados pelos restantes, no velho cemitério atrás da igreja. Eric tinha medo que se levantassem... Passava as noites em vigília. Seu pai foi um dos últimos. Tossiu muito uma tarde. Escarrou sangue. Sem forças, caiu.

Eric e sua mãe ainda tentaram tirá-lo de casa. No vilarejo não havia mais ninguém com forças suficientes para ajudar. Dois dias depois, quando a casa já fedia, a mãe de Eric não amanheceu.

O velho rádio também não falou mais.

Eric invadiu a abandonada casa de dona Genoveva para ver se as formigas da TV lhe diziam o que estava acontecendo, mas nada. O silêncio tomou conta de tudo. A noite era total. Eric juntou um pouco do que pôde, colocou tudo numa velha bicicleta cargueira, que encontrara abandonada na frente da venda de seu Onofre, amarrou uma lanterna no guidão e partiu rumo a Maringá. Imaginava que logo veria as casas, pessoas... Vida. As casas apareceram depois de quase duas horas de pedaladas e muito suor. Estavam todas lá, intactas. Mas não havia ninguém. Nunca mais encontrou vida.

No começo, assustava-se ao ver as pessoas e animais mortos, espalhados pelas ruas, pelas casas, apartamentos, carros, e o estômago se revoltava com o cheiro de podre, de carne se decompondo...

Não conseguira mais comer ou beber...

E com o tempo, acostumara-se. Acostumara-se...

Agora? Não precisava mais disso...


*Jornalista, editor-chefe da TV Guairaca (afiliada Globo) Guarapuava, PR

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