Do estorvo, Antônio
esculpiu constelações
Por Eduardo Murta
Ah, mirem as mãos de Antônio, que delas se revelará pura constelação de sonhos. Não é casual que por aquelas bandas fosse chamado de mestre. E que os mais céticos até nele vissem uma espécie de contrato com o sobrenatural. O que era sua singularidade no que esculpia, o encantamento, acabou por transformá-lo em refém. Porque a beleza que os homens não decifravam, passavam a temê-la.
Ele então não se surpreendia com a convocação aleatória feita pelo marquês. O manuscrito em tom excessivamente formal, arranjo que lembrava pergaminhos. E os guardas paramentados, com o discurso à ponta da língua. Era aguardado no acender dos lampiões daquela quarta-feira. Vislumbrara detalhe menor, mas dele não se esqueceria. Os emissários oficiais carregavam tremor nas poses e lhe desviavam o olhar. Como fosse inspirado pelo obscuro.
Qual nada. O sagrado é que o movia. Daí inscrever nas contas divinas tudo o que fosse circundado por inspiração sincera. Do entalhe preciso em suas obras à genialidade dos contemporâneos que haviam escolhido a pintura como instrumento de diálogo com o mundo. E quem não compreendesse essa semiliturgia, sim, é que estava alinhado com os desvãos das sombras e do desconhecido.
Fechou-se naquelas convicções e foi alinhavando a exposição de motivos para apresentação às autoridades, caso fosse inquirido. Elegera o traje para a ocasião. O de ver Deus. A única peça em cetim, as sandálias que herdara dos serviços aos cânones religiosos locais. E marchou, entre seguro e relutante, à audiência com o representante imperial.
A silhueta do palacete foi o que logo lhe chamou a atenção já no Largo do Matadouro. Soava imponente contra o vazio das cercanias. Aspecto absoluto, mas triste. Passara tantas vezes por ali sem se deter a esses significados que agora algo lhe subtraíam certezas. Se anunciou às divisas de ferro. Três sentinelas, rostos rígidos. E uma bruma, típica do lugar, emprestando ao cenário um contorno de mistério ritualesco. A ponto de um frio viajar-lhe à espinha, quando os portões se fecharam.
Foi conduzido ambiente a ambiente, e no salão maior se acantonou ao banco de madeira incrustado entre o janelão que dava para o Pico do Itacolomi e o boqueirão que sugeria uma lareira. Atmosfera sedutora naquele inverno. Pensou nos arremates das tantas esculturas que fizera povoar lugarejos afora, enquanto aguardava o marquês. Eram símbolo de um sentimento do qual se orgulhava. Ainda assim, roía as unhas do polegar esquerdo, no instante em que o anfitrião pisou o recinto.
Levantou-se, arqueou-se, sentiu-se esquadrinhado dos pés à cabeça. Os gestos recomendavam que se sentasse. Ficaram ali por longos segundos, Antônio esperando a primeira frase. Notou os anéis grossos, a túnica pesada, tom lilás. De lá saltou a voz grave, imperativa. Queria uma encomenda, para dali a poucos dias. Ouviu, circunspecto, e se recolheu à menção quase sussurrada: uma imagem do Diabo. Balançou a cabeça demoradamente, como quisesse despertar de um pesadelo. Aquilo não faria, forma alguma.
Ao revés. Pressionado, pediu prazo meramente estratégico. E mergulhou, com fervor mais refinado, no que presumia estar alojada a glória do contentamento. E, para ele, não poderia ser outra figuração que a anatomia do sagrado. Talhou, talhou, talhou, dos pórticos e altares das igrejas de Ouro Preto aos frontispícios de Sabará, aos passos da amargura em Congonhas do Campo. Esculpiu até que suas mãos hibernassem numa espécie de reclusão sacra. Encroassem. E Antônio, se julgando abençoado, se importaria um nada com a pecha de Aleijadinho. Porque era mera maneira de trapacear o demônio. Melhor: abreviar seus passos aos encontros definitivos com o Deus que concebera para além da pedra-sabão.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
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