Urariano Mota falou com Soledad...
* Por Marco Albertim
Um romance confessional, digressivo e pulsante; dir-se-ia um diário com registros não meramente factuais, mas com a obsessão de tornar o objeto principal da narração num personagem palpável. O autor Urariano Mota, ao escrever Soledad no Recife, resgatou-a de tal modo que conversou com ela, teve-a do lado, dormiu absorvendo o hálito paraguaio da moça que nunca foi dele, é agora, inda que morta, mais sua do que de quem a viu na intimidade do penhoar. Imaginou-a, ele, trouxe-a de volta como um cientista da palavra. Ele próprio o diz: “Eu quis – ambição de doido, já se vê – ter Soledad comigo, na minha frente. Seria algo como um médium na sessão espírita que invocasse seu espírito para tê-la de volta em toda a carne e concretude.”
Do começo ao fim do romance, o autor imiscui-se com o narrador oculto, cujo nome não é mencionado; de um jeito que está mais presente no foco da narrativa que o objeto de sua observação. Projeta-se, ele, para tê-la na sua lupa, como para se vingar da crueldade da história, do fim cruel que Sol teve. “Como são pequenas as cidades para os que têm convicções semelhantes!” – diz o narrador no primeiro capítulo, primeira página. Para quem conhece Mota, conviveu com ele nos anos duros da ditadura, ouviu de si, não poucas vezes, a constatação acima. Amando ou não Soledad, o autor/narrador diz do objeto de sua aversão, Daniel/Anselmo: “Havia nele algo de postiço, de pose. (...) Mas o que eu soube depois foi um mal-estar com a sua presença, um sentimento difuso que não se definia, pior, que não queria nem de longe definir.” Este é Urariano Mota. Aparece, ele, inclusive nos rasgos de indiscrição, ou de uma pergunta imprópria: “Em que categoria você o enquadra?” – inquire, para saber se Sol tem Daniel como companheiro ou como marido.
Disse, no começo, que é um romance pulsante, por isso abundante; por isso, aqui e ali, com excessos de explicações: “(...) com o seu instinto de fêmea, mas com o seu saber solidário, com a sua tradição de mulher destes trópicos, ela não queria ver seu companheiro em posição secundária.” Por ser pulsante, é um romance que se ressente da ausência de títulos em cada capítulo.Ele explica: “Penso que os recursos em um livro devem vir por necessidade interna, da própria narração e do escritor. Eu não senti a necessidade, devo dizer, não senti o livro me exigir isso. (...) Há uma tensão permanente, talvez num crescendo, e pôr os título equivaleria a seccionar o livro em partes autônomas, talvez.” Ele mesmo confessa que “há uma tensão permanente” e não se dá conta de que a tensão grita pelos títulos. “(...) partes autônomas”!? Absolve-o o “talvez.”
Parece, Urariano Mota, um escritor do absurdo; mas não o é, o que faz é usar com habilidade as palavras; assim, ao detectar uma mentira em Daniel, ele explica: “Por isso ouvi, e também vi com os ouvidos, em recolhimento.” Bela síntese. A vocação para os excessos volta, quando o narrador refere-se à noite em que conheceu o casal, no esforço de identificar “sorte ou azar.” Ele solta-se, sem freios: “Uma parte impetuosa, romântica, me fala que eu tive azar. Uma outra, realista, dura, pragmática, documental como os balanços contábeis (...)” Como não cabe no espaço, não transcrevo as vinte primeiras linhas do capítulo 4, são excessivamente digressivas. Pela mesma razão, os diálogos do mesmo capítulo; não são digressivos, são precisos, curtos e cortantes como uma quicé afiada. Coisa de quem tem intimidade com o ofício. O capítulo 5 oscila entre os gêneros conto e novela; fosse conto seria borgiano, inda que o formato de novela se manifeste no colóquio da primeira pessoa.
O sexto capítulo destila uma oração, sempre na primeira pessoa. O sétimo é particularmente tenso; título, Mota, há um grito sufocado pedindo título! O oitavo é acentuadamente digressivo, longo. Mas é aqui que o autor/narrador mostra-se fino na constatação: “Não ousávamos perguntar a que preço, a que preços, porque os desonestos mais desonestos são muito sensíveis à mais leve desconfiança.” E porque Daniel não amava Sol, diz o narrador: “Então ele era obrigado a fingir dentro do fingimento.” Finíssimo. A identidade do espião, ou o pressentimento do pior insinua-se na alma de Sol, no capítulo 10; as páginas nos dão ímpeto de torcer o pescoço de Daniel/Anselmo. A dor de Soledad vem a nu no capítulo 11; o autor soube, genial e poético, transmiti-la para nós; para nós e para a agonia do escritor.
* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
* Por Marco Albertim
Um romance confessional, digressivo e pulsante; dir-se-ia um diário com registros não meramente factuais, mas com a obsessão de tornar o objeto principal da narração num personagem palpável. O autor Urariano Mota, ao escrever Soledad no Recife, resgatou-a de tal modo que conversou com ela, teve-a do lado, dormiu absorvendo o hálito paraguaio da moça que nunca foi dele, é agora, inda que morta, mais sua do que de quem a viu na intimidade do penhoar. Imaginou-a, ele, trouxe-a de volta como um cientista da palavra. Ele próprio o diz: “Eu quis – ambição de doido, já se vê – ter Soledad comigo, na minha frente. Seria algo como um médium na sessão espírita que invocasse seu espírito para tê-la de volta em toda a carne e concretude.”
Do começo ao fim do romance, o autor imiscui-se com o narrador oculto, cujo nome não é mencionado; de um jeito que está mais presente no foco da narrativa que o objeto de sua observação. Projeta-se, ele, para tê-la na sua lupa, como para se vingar da crueldade da história, do fim cruel que Sol teve. “Como são pequenas as cidades para os que têm convicções semelhantes!” – diz o narrador no primeiro capítulo, primeira página. Para quem conhece Mota, conviveu com ele nos anos duros da ditadura, ouviu de si, não poucas vezes, a constatação acima. Amando ou não Soledad, o autor/narrador diz do objeto de sua aversão, Daniel/Anselmo: “Havia nele algo de postiço, de pose. (...) Mas o que eu soube depois foi um mal-estar com a sua presença, um sentimento difuso que não se definia, pior, que não queria nem de longe definir.” Este é Urariano Mota. Aparece, ele, inclusive nos rasgos de indiscrição, ou de uma pergunta imprópria: “Em que categoria você o enquadra?” – inquire, para saber se Sol tem Daniel como companheiro ou como marido.
Disse, no começo, que é um romance pulsante, por isso abundante; por isso, aqui e ali, com excessos de explicações: “(...) com o seu instinto de fêmea, mas com o seu saber solidário, com a sua tradição de mulher destes trópicos, ela não queria ver seu companheiro em posição secundária.” Por ser pulsante, é um romance que se ressente da ausência de títulos em cada capítulo.Ele explica: “Penso que os recursos em um livro devem vir por necessidade interna, da própria narração e do escritor. Eu não senti a necessidade, devo dizer, não senti o livro me exigir isso. (...) Há uma tensão permanente, talvez num crescendo, e pôr os título equivaleria a seccionar o livro em partes autônomas, talvez.” Ele mesmo confessa que “há uma tensão permanente” e não se dá conta de que a tensão grita pelos títulos. “(...) partes autônomas”!? Absolve-o o “talvez.”
Parece, Urariano Mota, um escritor do absurdo; mas não o é, o que faz é usar com habilidade as palavras; assim, ao detectar uma mentira em Daniel, ele explica: “Por isso ouvi, e também vi com os ouvidos, em recolhimento.” Bela síntese. A vocação para os excessos volta, quando o narrador refere-se à noite em que conheceu o casal, no esforço de identificar “sorte ou azar.” Ele solta-se, sem freios: “Uma parte impetuosa, romântica, me fala que eu tive azar. Uma outra, realista, dura, pragmática, documental como os balanços contábeis (...)” Como não cabe no espaço, não transcrevo as vinte primeiras linhas do capítulo 4, são excessivamente digressivas. Pela mesma razão, os diálogos do mesmo capítulo; não são digressivos, são precisos, curtos e cortantes como uma quicé afiada. Coisa de quem tem intimidade com o ofício. O capítulo 5 oscila entre os gêneros conto e novela; fosse conto seria borgiano, inda que o formato de novela se manifeste no colóquio da primeira pessoa.
O sexto capítulo destila uma oração, sempre na primeira pessoa. O sétimo é particularmente tenso; título, Mota, há um grito sufocado pedindo título! O oitavo é acentuadamente digressivo, longo. Mas é aqui que o autor/narrador mostra-se fino na constatação: “Não ousávamos perguntar a que preço, a que preços, porque os desonestos mais desonestos são muito sensíveis à mais leve desconfiança.” E porque Daniel não amava Sol, diz o narrador: “Então ele era obrigado a fingir dentro do fingimento.” Finíssimo. A identidade do espião, ou o pressentimento do pior insinua-se na alma de Sol, no capítulo 10; as páginas nos dão ímpeto de torcer o pescoço de Daniel/Anselmo. A dor de Soledad vem a nu no capítulo 11; o autor soube, genial e poético, transmiti-la para nós; para nós e para a agonia do escritor.
* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
A análise da obra deu aflição ao leitor. Hábil foi Urariano Mota, e também hábil foi o autor dessas linhas. Mostrar e ocultar o tempo todo: aguça a curiosidade. Vamos conferir.
ResponderExcluir