terça-feira, 29 de setembro de 2009




Abadá

* Por Laís de Castro

Carnaval é carnaval e em amor de rei momo a gente se conhece no sábado para desconhecer na quarta-feira-de-cinzas, quando tudo volta ao normal, a vida deixa de ser uma festa pra voltar a ser difícil e eu aqui duranga, tendo que trabalhar nessa lanchonete de sol a sol pra poder juntar dinheiro pro abadá do ano que vem. Ora, de repente, chega esse gringo que mora no Rio e é diretor de multinacional com essa idéia louca de casar, que casar coisa nenhuma, casar não é casaca, amigo.

Eu estava lá no bloco, suando e pulando, com mil pessoas por metro quadrado, tudo apertadinho mas gostoso, cantando com a Ivete Sangalo e, de repente, chega esse gringo doido e me agarra e fui gostando e pulando grudada nele e eu ali saindo do chão, só no axé. Escapei, sorri para ele e sumi no meio da multidão. Mas isso foi só o começo.

Agora vem esse maluco me pedindo em casamento, quer me levar pra morar no Rio de Janeiro com ele e depois para os Estados Unidos que ele é gringo americano mesmo. Quando eu era pequena a gente via um americano no Pelourinho, a máquina fotográfica na mão, a camisa florida que eles gostam de flor na camisa e corria atrás pra ver se ganhava alguma moeda que a vida desde aquele tempo não era fácil.

Eu fiz só o curso primário e virei doméstica, mas, sem falsa modéstia, fui ficando uma mulatona gostosa, dourada, de carnes firmes e na segunda casa que eu trabalhei já ganhava uma grana do patrão, por fora, para fazer umas coisinhas com ele. Isso vinha dobrando o meu salário e eu também danei a achar gostoso, que não sou de ferro.

Assim fui fazendo meu pé de meia até que conheci o grande amor da minha vida. Era um negro cor de nanquim, alto, de costas largas, parecia um armário, tinha os dentes brancos como leite, o sorriso suave, o cabelo raspadinho igual do Barack Obama, e falava baixinho como um padre confessor, diferente de todos os outros negros da Bahia que gritam e gostam de contar vantagens e beber cachaça pelas esquinas.

Então esse homem veio chegando de mansinho no ônibus em que eu ia para a minha casa e se encostou em mim, eu tenho essa sina, acho que é por causa da minha bunda durinha, todo homem vem encostando em mim e ficando bem disposto, digo, assim, bem disposto. Aquilo me fez estremecer e você pode não acreditar, apesar de tudo eu nunca tinha tido um homem de verdade dentro de mim. Conversa vai, conversa vem, e quem queria conversar? A gente queria mesmo era encurtar a conversa pra que ficar insistindo num assunto que todos sabem que vai acabar na cama, pronto, acabou.

Ele era delicado, macio, parecia um deus de ébano. Eu estremecia de prazer e ele me abraçava tanto depois do amor que eu imaginava que nada na vida poderia me machucar, pois estava ali protegida por aquele orfeu. Ele me supria de amor, prazer, carinho, companhia, alegria e felicidade.

Todo mundo sabe que um amor assim não pode durar e eu vou economizar tempo, porque na Bahia, camarão que dorme o mar leva. Quem atravessou o nosso caminho foi uma branca linda, morena, de olhos verdes, rica e cheia de paixão. Eu sei que ele me amava, mas não há quem resista a apartamento de cobertura, carro, mulher branca e gostosa.

Ele ficou comigo e com ela durante um ano.

Era tanta briga, tanto grito na porta da minha casa, ela mandava recado malcriado pelo motorista, ameaça de morte com buquê, dizendo que umas flores iguais aquelas iam enfeitar meu caixão, chegou a mandar um cara com um bom monte de dinheiro para eu sair da vida dele. Nesse dia eu não me contive e dei o troco. Baixou um santo brigador em mim, eu parei na porta do prédio dela, as pernas abertas, a mão na cintura, uma mulatona de 1m80 gritando tanto e tão alto que chamaram a polícia.

Cana, você sabe o que é isso? Fui presa porque não queria que ela roubasse meu homem!

Era um dia 7 de setembro, dia da Independência do Brasil e da independência dele, nunca mais vou esquecer esse dia porque foi quando ele me deixou. Com tanto amor e tanto carinho, porém, foi me buscar na delegacia, me levou para casa e explicou que não ia mais dar, com aquela voz suave de Paulinho da Viola, e eu ali escutando e as lágrimas escorrendo e eu vendo tudo preto, desmaiei não de amor, mas de fome, porque tinha esquecido de comer de tanta raiva.

Não, eu não tive raiva do gringo que me encoxou atrás do Trio Elétrico. Ele gostou das minhas coxas, redondas como um pilão de amassar amendoim no terreiro. Sou cor de bronze, fico ali entre a mulata e a negra, tudo bem, os gringos adoram, os patrões também, sou bonita. Afinal.

Meu amor me deixou há 3 anos e eu já arrumei outro banzé, esse é o problema. Ele é meio que gritão, mas me adora de verdade. Só que eu acho o beijo dele meio babado e que ele bebe muita cerveja apesar de ser motorista de táxi e dirigir o dia inteiro meio que pro alegre. Na Bahia o povo toma cerveja como água, também é um calor desgraçado e a gente vai vivendo de amor e tristezas, de alegria e solidão, das belezas e das dessemelhanças.

Preciso voltar um pouco e dizer que arrumei emprego numa lanchonete, onde ganho mais e trabalho menos e haja gorjeta, meu irmão, mas lá eu não deixo ninguém me encostar. Tira a mão que não é pro seu bico. Calado! E tira a mão senão eu chamo a justa, o guarda também vai querer tirar uma lasquinha pra me livrar do freguês e a coisa esquenta. Vira putaria, baixaria, melhor só olhar bem feio pro corno e mandar tirar a mão.

Meu taxista só aparece na lanchonete para almoçar e depois na hora de fechar. Aí ele e me leva pra casa e fica lá comigo, depois do amor, aquele cigarro honesto, aquela fumaça azul cor do céu da Bahia...

E então com esse meu novo homem eu vou pro trio, de abadá comprado a prestação e tudo, minha vida quase no lugar, faltando um ano pra eu acabar de pagar a casa na periferia e ele vir morar comigo e a gente até pensando em ter neguinho e now, suddenly, me aparece esse gringo porra louca, aqueles olhos azuis, aquele cabelo amarelo, a pele vermelha como crista de galo, queimada do sol de Salvador, me agarrando assim e me deixando com insônia num sábado de carnaval? Vai se coçar sai da minha cabeça americano louco. Quem te deu esse direito?

Domingo de Carnaval, depois de tomar umas cervejas com o meu taxista, ele foi pro trabalho e eu pro trio elétrico, porque, como diz Caetano Veloso atrás do trio só não vai quem já morreu. Preciso dizer que eu passo o dia todinho lá de pé servindo os clientes? Além dos caras, tem até umas moças que vão lá me cantar e estender a mão prá tirar uma casquinha da minha bunda. Eu aceito sim senhor, porque a mão é delicada e as gorjetas são enormes. Pena que elas não têm onde segurar, senão eu me amarrava numa.

Bem, então eu estava lá no bloco e quem vem me encoxando de novo? O danado do americano aí eu fiz um escândalo, falei que ia chamar a polícia, os seguranças apartaram, levaram ele pro outro lado e eu pulei a noite todinha levantando poeira, gritando e cantando e seguindo a música, o ritmo, o atabaque, e até Carlinhos Brown veio com a Timbalada ajudar a noite a ficar mais linda.

Eram 4 horas da manhã quando eu saí para encontrar meu taxista no ponto marcado e então lá veio o americano, desculpe, desculpe, eu não faço mais aquela coisa feia, eu só quero conversar um minuto, eu só quero ver você amanhã de dia, na praia, posso ser seu amigo, por favor, só quero conversar um minuto, falou, naquele português arrevesado de criança de cinco anos. Mas falou!

Caramba, o homem e é mais insistente do que onda do mar, vai e volta, vai e volta...

Cara amanhã a meia noite eu vou entrar no trio e a gente conversa, que praia que nada eu sirvo na lanchonete o dia inteiro, não vou dizer aonde. O gringo mora no Rio de Janeiro, trabalha no Rio, gosta do Rio e gosta dessa minha Bahia, que tem sexo à flor da terra.

Então ele chegou à meia-noite e segurou a minha mão, vamos emboria daqui que eu quero você pra mim, só pensa em você, passei o dia todo sofriendo em vez de aproveitar esse sol, ele sussurrava na minha orelha eu sentia aquele bafo quente e gostoso e o cara era delicado como o meu deus negro, alguém pode acreditar nisso, não pode. O taxista só vinha me buscar as 4 da matina e, meia hora depois, eu estava na cama do hotel com o loiro.

Não vou repetir para vocês tudo o que eu sentia com aquele que a branca me roubou. O gringo era gentil, protetor, simpático, ria à toa, foi me envolvendo e eu então pensei talvez valha a pena ficar uns tempos com esse gringo de olhos de maresia, sei lá, não sei... Meu cabelo amarelo, já estou chamando o cara de meu, que merda é essa, tenho que levantar e correr que o taxista vai me buscar. O gringo não quer nem saber, diz que vai casar comigo. Corri. Voei. Ainda flutuei um pouco no trio da Ivete, suando o abadá pra não dar na vista. Estava louca de paixão pelo amarelo. Ufa, o taxista ia chegar...

Na Bahia, peixe que se distrai vira filé... foi o que aconteceu com o taxista.

Medo. Vou logo contando que a palavra medo e o verbo apavorar me mandaram de volta pra lanchonete. Eu solitária em Salvador, ele sozinho pro Rio. Quem pensa que o amarelo desistiu, esqueça. Eu lá servindo, um mês depois do carnaval, a vida voltou ao normal, todo dia a mesma ladainha e haja ladainha praquele tanto de igreja... eu lá servindo e ele sentado na mesa, o dia todinho, queimado, salgado e belo, com uma paciência franciscana, esperando eu dizer que casava com ele.

Fui para o Rio passar férias e ele me tratou como uma princesa, me desejou como a uma rainha, me rasgou de paixão, me roubou a lucidez na cama e na vida... não queria que eu voltasse, mas eu conheço bem a palavra medo, não nasci pra ganhar na loteria.

Voltei, chorando mais que criança desmamada, conjugando o verbo assustar.

Terminei tudo porque não acredito em conto de fadas. Eu, uma mulata pobre da Bahia, ele não vai me apresentar para a família lá dos Chicagos, vai ter vergonha de mim, pobre e negra... E depois, como dois e dois são quatro, me troca por uma brancona para ter aqueles filhos loirinhos que a gente vê nos calendários.

Parei de atender os telefonemas dele, tão insistentes quanto minha recusa.

Abri e aceitei os presentes que vinham pelo correio com a dor da saudade doendo mais que sapato alto apertado, sem meia. Minha cabeça triste, meu tesão no pé, eu mais que camarão de acarajé, meus olhos vermelhos não viam nenhum macho mais por ali. Emagreci oito quilos, eu, que já era magra.

O deus negro se ofereceu para me consolar, o taxista, deu uma de irmão, que na Bahia, as coisas terminam e a gente fica amigo e irmão, mesmo.

Eu não aceitei porcaria nenhuma. Era como uma máquina, trabalhando no automático... Só pensava em guardar dinheiro para o abadá, queria o carnaval para sonhar, já que a insônia me impedia de sonhar dormindo... Mas o carnaval demorava a chegar como ônibus quando a gente está no ponto, aquele nervoso, aquela ansiedade.

Eu estava lá no bloco prestando bem atenção à Ivete Sangalo, pulando de orfandade, levantando poeira de raiva, sei lá o que, saudade, a dor profunda diminuída mas não curada. Ainda parecia uma flor murcha, a vida desfeita em ondas de suor e vento, a voz em tons graves, os olhos só vendo o chão. De repente, senti um jeito familiar de me abraçar, de me tomar a cintura, protetor, de quem me queria de verdade. Comecei a vazar lágrimas como um rio na cheia. Um ano inteiro tinha passado e a vida só que jogando nas minhas mãos a sofrência e a alegria do verbo recomeçar. Desta vez eu vou ficar viva. Na Bahia, quem tem medo morre cedo.

* Jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na Editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e é autora do livro de histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”, publicado pelo selo ARX (Siciliano). Atualmente dedica-se apenas à Literatura.

2 comentários:

  1. Bravo! Arrasou geral! Narrativa automática na primeira pessoa como quem encarna o persoagem, deixa-se tomar por ele e vai assim até o final sem medo de errar, sem medo de ser feliz. Parabéns.

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  2. adorei!!!fui ate o fim num fôlego só....

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