Epifania
* Por Risomar Fasanaro
Ao jornalista António Gouveia
Rua Augusta, noite de sexta-feira. Ali estava eu na lanchonete Ibotirama com António Gouveia, Cacá Mendes, Diogo Gomes e Joseane. Os quatro especialistas em cinema, e eu ali, uma ignorante da 7ª arte, que só sabe gostar ou não gostar desse ou daquele diretor, desse ou daquele ator, dessa ou daquela atriz, entre aqueles especialistas.
Havia meses andava triste, angustiada, tentando a todo custo entender uma situação que vivera e que me deixara marcas, feridas que não cicatrizavam. E por mais que rememorasse e analisasse, não conseguia compreender.
No meio da conversa, falou-se em Chaplin. O grande Chaplin de quem é impossível não gostar. Suspirei aliviada, pois havia lido sua biografia e assistido a todos os seus filmes, não apenas uma, mas várias vezes cada um deles. Pois não sei ler um livro sem relê-lo, ver um filme uma única vez. Sempre que posso vejo e revejo.
Sentado em frente a mim Antônio Gouveia, cineclubista histórico, jornalista e advogado, mentor intelectual de toda a base legal dos cineclubes no Brasil. Junto com pessoas do DA XI de Agosto foi ele que redigiu o Estatuto Básico dos cineclubes nos anos 70, quando fundou um cineclube no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.
No início dos anos 80, ele e Diogo Gomes fundaram o Cineclube Bixiga, em São Paulo, que funcionou até 1988, inspirando todos que vieram a seguir: o Cineclube Oscarito, o Elétrico Cineclube e vários outros, inclusive o Espaço Unibanco de Cinema, que é “cria” do famoso Bixiga.
Mas voltemos ao bar. Digo a eles o quanto gosto do Chaplin, e Gouveia começa a falar sobre Luzes da Cidade, um dos mais famosos filmes daquele diretor.
Ele revive as principais cenas do filme com tamanha sensibilidade que ouço sem piscar os olhos, pois se há algo que me encanta é a sensibilidade, a inteligência, o conhecimento. Sempre me rendo a esses atributos.
Ele descreve pequenos gestos e olhares dos atores, detalhes mínimos que me escaparam nas várias vezes que assisti ao filme. Percebo que já não está mais ali no bar. Que sua imaginação o transportou para dentro da história. Por instantes me esqueço do problema que me afligia ainda há pouco.
Já não sou mera ouvinte, embarco na “viagem” de Gouveia e vou até a floricultura de Luzes da Cidade. Sou capaz de “ver” a cor dos olhos da moça, a sua delicadeza vendendo flores.
Ele rememora a cena em que ela entrega a flor ao vagabundo (Carlitos) e ao tocá-lo, reconhece nele o seu verdadeiro benfeitor, descobre naquele instante que o ricaço que financiou a cirurgia e ela pensou existir, não era outro senão o Vagabundo.
Gouveia mergulha não só no filme, mas na alma da personagem quando ela se dá conta de não ter sido portadora apenas de uma cegueira física, mas de uma outra que a impediu de reconhecer aquele a quem realmente devia sua visão.
Naquele instante a verdade se revela não apenas à personagem do filme, nas palavras que eu ouvia de Gouveia, mas também a mim.
Senti vontade de beijar as mãos de Gouveia que, sem saber, ao rememorar aquele filme me tirou uma venda dos olhos e me fez compreender a cegueira que vivi durante vários anos.
Gouveia jamais soube que naquela noite com sua ajuda, minha alma angustiada se libertou.
* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
* Por Risomar Fasanaro
Ao jornalista António Gouveia
Rua Augusta, noite de sexta-feira. Ali estava eu na lanchonete Ibotirama com António Gouveia, Cacá Mendes, Diogo Gomes e Joseane. Os quatro especialistas em cinema, e eu ali, uma ignorante da 7ª arte, que só sabe gostar ou não gostar desse ou daquele diretor, desse ou daquele ator, dessa ou daquela atriz, entre aqueles especialistas.
Havia meses andava triste, angustiada, tentando a todo custo entender uma situação que vivera e que me deixara marcas, feridas que não cicatrizavam. E por mais que rememorasse e analisasse, não conseguia compreender.
No meio da conversa, falou-se em Chaplin. O grande Chaplin de quem é impossível não gostar. Suspirei aliviada, pois havia lido sua biografia e assistido a todos os seus filmes, não apenas uma, mas várias vezes cada um deles. Pois não sei ler um livro sem relê-lo, ver um filme uma única vez. Sempre que posso vejo e revejo.
Sentado em frente a mim Antônio Gouveia, cineclubista histórico, jornalista e advogado, mentor intelectual de toda a base legal dos cineclubes no Brasil. Junto com pessoas do DA XI de Agosto foi ele que redigiu o Estatuto Básico dos cineclubes nos anos 70, quando fundou um cineclube no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.
No início dos anos 80, ele e Diogo Gomes fundaram o Cineclube Bixiga, em São Paulo, que funcionou até 1988, inspirando todos que vieram a seguir: o Cineclube Oscarito, o Elétrico Cineclube e vários outros, inclusive o Espaço Unibanco de Cinema, que é “cria” do famoso Bixiga.
Mas voltemos ao bar. Digo a eles o quanto gosto do Chaplin, e Gouveia começa a falar sobre Luzes da Cidade, um dos mais famosos filmes daquele diretor.
Ele revive as principais cenas do filme com tamanha sensibilidade que ouço sem piscar os olhos, pois se há algo que me encanta é a sensibilidade, a inteligência, o conhecimento. Sempre me rendo a esses atributos.
Ele descreve pequenos gestos e olhares dos atores, detalhes mínimos que me escaparam nas várias vezes que assisti ao filme. Percebo que já não está mais ali no bar. Que sua imaginação o transportou para dentro da história. Por instantes me esqueço do problema que me afligia ainda há pouco.
Já não sou mera ouvinte, embarco na “viagem” de Gouveia e vou até a floricultura de Luzes da Cidade. Sou capaz de “ver” a cor dos olhos da moça, a sua delicadeza vendendo flores.
Ele rememora a cena em que ela entrega a flor ao vagabundo (Carlitos) e ao tocá-lo, reconhece nele o seu verdadeiro benfeitor, descobre naquele instante que o ricaço que financiou a cirurgia e ela pensou existir, não era outro senão o Vagabundo.
Gouveia mergulha não só no filme, mas na alma da personagem quando ela se dá conta de não ter sido portadora apenas de uma cegueira física, mas de uma outra que a impediu de reconhecer aquele a quem realmente devia sua visão.
Naquele instante a verdade se revela não apenas à personagem do filme, nas palavras que eu ouvia de Gouveia, mas também a mim.
Senti vontade de beijar as mãos de Gouveia que, sem saber, ao rememorar aquele filme me tirou uma venda dos olhos e me fez compreender a cegueira que vivi durante vários anos.
Gouveia jamais soube que naquela noite com sua ajuda, minha alma angustiada se libertou.
* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
Bela homenagem a quem tanto bem fez, sem se dar conta disso. Mas vc, cara Ris, por estar atenta à relação e por saber tirar dela ensinamentos valiosos, merece parabéns e aplausos do Leitor.
ResponderExcluirQuerida Riso,
ResponderExcluirum suspeito e tanto eu sou... Justiça, divinamente feita ao Gouveia. Parabéns e tanto aos dois! Bjs