quinta-feira, 10 de setembro de 2009




La Mano de Dios ya Dio en Mi Huevos, e algo sobre Pelé

* Por André Falavigna

Oh, sim eu compreendo. Ele é transgressor, rebelde, contestador. E tem até tatuagem do Che Guevara. Amigo de Fidel e Chávez, fuma charutões e sempre estrila contra o Maldito Sistema. Convenhamos, amiguinhos: quem gosta dele por isso, dele gostaria mesmo que o sujeito tivesse sido medíocre. E ele foi gênio, é imortal. Grande entre os Grandes. Falta-lhe, é verdade, qualquer coisa como – sei lá, deixe-me ver… – longas passagens pela cadeia ou a ruína financeira, pronto! Mas, de resto, Diego Armando Maradona é uma espécie de pacote – e completo – de esquerdismos juvenis idiossincráticos. Façam-me o favor. Já deu no saco.

Dois pontos introdutórios. Não, não vou me desviar do assunto. Volto já a Dieguito. Mas, antes, dois pontos introdutórios: discurso é a mãe e mito é a vovozinha. Gosto de ambos, mas como gosto de sal e pimenta. Tempero não é alimento. Explico-me.

Primeiro, o discurso.

O pessoal mistura muito as coisas. Toda essa história de relativizar, de raciocinar a partir de vários pontos de vista, ela é muito útil – desde que você reconheça ou descubra que é capaz de atestar a validade desses pontos, de compreender os fundamentos deles e de conhecer seus objetos, quais sejam, as coisas que os cercam. Não me venham com aquela ladainha de que toda afirmação nada mais é do que a afirmação de determinado desejo, vontade ou interesse; afinal, eu poderia responder-lhes que tal afirmação nada mais é do que o desejo, vontade ou interesse de que toda afirmação fosse idêntica a esta e – com mil demônios – estaríamos todos livres para ir para casa, morrer de inanição. O apego sistemático à admissibilidade de versões auto-excludentes é pura paura, medo de encarar os fatos, e só.

Sim, nós temos acesso à realidade, ao verdadeiro – não de maneira completa e irrestrita, é claro, mas nossos recursos, precários o quanto sejam, ou servem para perceber algo que não as próprias limitações, ou não servem nem para eu escrever este texto, nem para os senhores o lerem, nem para ninguém comentá-lo. Sendo verdadeira – crença tão mais curiosa quanto mais freqüentemente externada por quem não admite nenhuma espécie de falsidade – esta última hipótese, deveríamos – é repetitivo, eu sei, fazer o quê? – todos nos matar, para ontem. Há quem concorde com isso. Normalmente, entre um gole de cabernet-sauvignon e uma fatia de pastrami delicado. Harmonizados, é claro. Haja, viu?

Depois, o mito.

Bede Griftths, em “Hinduísmo e Cristianismo, o Casamento entre o Oriente e o Ocidente”. Bom livro, ainda que frágil em alguns pontos: impreciso quanto a certos conceitos relativos ao hinduísmo, incompleto no desdobramento de raciocínios que, do modo como estão expostos, são confusos, quando não insustentáveis nos próprios termos. De toda forma, há passagens extraordinárias. Há Aristóteles ali. Muito esclarecedor. Creio que tudo o que eu gostaria de dizer sobre o mito, para o caso, está aqui (grifos meus):

“Como dissemos, o mito é a expressão simbólica da Realidade em termos da imaginação humana. A história de Adão e Eva e do paraíso é obviamente a história mitológica da origem do homem e de sua queda do estado original de unidade com Deus… A história da redenção humana – o Filho de Deus fazendo-se homem, sua morte e ressurreição… é nitidamente uma linguagem mitológica. Sem dúvida, isto não quer dizer que a história não seja verdadeira; pelo contrário, é o ponto mais próximo que podemos chegar da Verdade. É ilusão pensar que a linguagem científica seja ”verdadeira” e a linguagem poética seja “não-verdadeira”… A poesia, ou a linguagem do simbolismo, está mais próxima da realidade, mas a Verdade em si só pode ser conhecida por uma intuição pura que está além de toda linguagem”.

Muito bem. Aí está. É verdade, a mera descrição de fatos nunca é mera descrição – o narrador escolhe enquanto descreve. Daí a concluir que não descreva nada, vai-se longe. Muito do que é a História é, aliás, indescritível. E, não por isso, inexprimível; não por isso, menos verdadeiro. Eis o mito, que pode dizer, às vezes, muito mais que o cientista adstrito a um certo conjunto de objetivos e trabalhando sob outra perspectiva, limitante, regrada. É assim mesmo. Por outro lado, isso não quer dizer que os fatos, ou a descrição deles, deva ser deixada de lado em favor de qualquer outra descrição menos precisa ou manifestamente impossível, mas que venha a ser anunciada como mitológica e que, ora vejam só, pareça mais gostosinha e calmante a certos ouvidos e coraçõezinhos bolivarianamente solidários. O mito expande as possibilidades do fato, faz-nos vê-lo sob outros ângulos, interpretá-lo mais profundamente – às vezes, de maneira até paradoxal –, mas não o “desmente” no sentido clássico da palavra, assim como a busca pela frieza descritiva não “destrói” mito nenhum. Em suma, rapaziada: propaganda política é outra coisa, compreendem? Entrar numas de Doutor Goebbels não transforma ninguém em

Profetão Garboso, só em filha da puta. E digo mais: em grandessíssimo filha da puta.

Portanto, o futebol de Maradona não melhora nem piora diante de seu modo de ver o mundo. E Pelé, cujo pecado maior parece ter sido desalinho ideológico, não jogou menos do que jogou porque não reconheceu a filha que fez. Maradona não terá sido menos brilhante porque moralistas de ocasião atribuem suas bravatas à prática do violento esporte nasal, mas também não terá sido mais brilhante que Pelé porque este preferiu, ao longo da vida, dormir com mulheres brancas ou não fumar Cohibas, Siglo V. É profundamente constrangedor ver gente defendendo cotas raciais, mesmo sabendo-as baseadas nas mais nazistóides seleções de fotografias, para em seguida acusar de racismo um sujeito e baseando-se nas preferências sexuais dele.

Penso que Fidel Castro não passa de um gângster de quinta categoria, facinoroso, ignorante e cruel; Maradona pensa de Fidel que ele é quase sensual. E daí? Nada disso tem nada a ver com o que vi em 1986: ali, Maradona foi a maior maravilha do mundo, um prodígio quase musical, herói capaz de emprestar poesia até mesmo às mais grossas safadezas. Não só por 86, mas por tudo o que fez, ainda que morresse de amores por Stalin, Maradona continuaria sendo o melhor jogador do seu – e do meu, até aqui – tempo.

Eu vi.

Por outro lado – e isso talvez seja dolorido – Pelé poderia até mesmo ter enterrado vivos seus rebentos inconvenientes, ajudado pessoalmente a torturar inocentes nos porões da ditadura, se submetido a um processo de branqueamento michaeljacksoniano: continuaria sendo Pelé, algo para além de toda tentativa mesquinha de definição, de verbalização, algo diante do que toda a palavra soa banal e só o silêncio não é vulgar. Algo como o trovão ou como a tempestade quando nos parecem dirigidos a nós. Algo que não se repetirá.

Há, claro, uma alternativa a essa dor diante do desenquadramento da figura de Pelé aos moldes tão bonitos nos quais se derramam as melhores – como sempre, não é? – intenções da hora: destrua o passado, ignore-o, não permita que as gerações futuras saibam de onde vieram. Maradona é mais legal, ele é – como é que se diz? – “dos nossos”. É, inclusive, muito engraçado ver como, sob esse ângulo, o apreço ao transgressor rebelde se dá pelos critérios mais ordinariamente caretas: Diego é, desde aqui de onde o miro, o mais obediente de todos os meninos bonzinhos. Quase caio na tentação de ir à rua, chinelo em punho, para gritar-lhe que pare de dizer bobagens e venha já pra dentro, pois está na hora de merendar.

Não adianta correr, amiguinhos. Quando o camarada tenta rejeitar a realidade, pouco importa que comece pela História: mais dia, menos dia, ele acaba se dando conta, abobado, de que destruiu também o Mito, e de que lhe restaram apenas pimenta – e sal.

(*) André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, http://ofalavigna.blog.uol.com.br/, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.

Um comentário:

  1. Dona Mara, sósia de Mercedes Sosa, já não canta nem encanta: é a personificação de um país que vive de recordações peronistas de quando vivia a época das vacas gordas. Mas ... o sonho acabou, e esse lema que introduziu os anos 80 os hermanos só vão ouvir quando cessar a idolatria do passado. Saudosismo é droga, causa dependência e pode até excluir da Copa.

    ResponderExcluir