Cine São Luiz *
** Por Urariano Mota
No alto, anunciava-se, Um Homem, Uma Mulher.
As moças passavam pela Aurora, em frente ao São Luiz. Jovens tomavam o lugar na fila, mais venturosos. João se sentia como num pântano, e isso mais se realçava por sentir às costas o mangue das margens do Capibaribe. Era necessário entreter-se, enfiar-se furioso na discussão, para esquecer o lado onde se sentava, lugar de onde não brotava o amor. E sem fitar Carlos, nem Samuel, apenas olhando as colunas do cinema, que lhe pareciam frágeis, de papelão, e dirigindo-se em sentimento às jovens e suas pernas, a seu chilreio de pássaros que antegozam o namoro, ao sorvete, e à intimidade do escuro sob a grande tela, foi dizendo:
- Esse filme é uma merda. Isto a crítica não diz. Vejam as pessoas que entram! - e apontou-as.
Samuel acompanhou-o, concordando. O quanto era diferente aquela juventude da gente que descia e vivia na ladeira do sapoti. Devia haver alguma relação entre a gente que não tinha acesso àquela fita e a natureza da própria fita. Algum nexo causal, que não sabia expressar em boas palavras, mas que desconfiava, sintetizando-o nessa fórmula mais simples: aquilo era um cinema, uma fita burguesa. Mas como eram perfumadas e atraentes aquelas meninas de boas e carnudas coxas burguesas, quanta graça na sua leviandade e agitação de passarada! Isso ele gostaria de esconder, de não levar em conta, de fechar os olhos, mas quanto mais os fechava mais as via, indo até o fetiche, brincos, batom e ruge das meninas burguesas. Como casavam bem com o chocolate, com a pastilha, com o bater de sandálias dos seus pezinhos, com o lápis azul sobre as suas pálpebras, com a pulseira e aliança que rejeitavam cães sarnentos! Ah, era necessário o império da revolução para fazer juntar a cães piolhentos a fêmea que adentrasse o São Luiz com pé firme, renovada, superior, na arte que acentuasse o povo que não tem vez, que jamais teve. Algum nexo, Samuel sentiu, deveria haver. Esse nexo nem Carlos nem João percebiam, ele achava.
- Olhem bem a gente que entra! João exclamava.
Carlos compreendia o quanto havia de ressentimento no dedo de João que apontava, e sorria a isso, um sorriso que continha superioridade, agregada a uma íntima, doméstica simpatia. Parecia-lhe o irmão que deixara em casa, falando seus pensamentos de excluído pela boca de João. A superioridade em relação ao dedo, um dedo chagado de leproso na cova apontando na ribanceira os venturosos, era óbvia: Carlos poderia, mais cedo ou mais tarde, subir a rampa e ocupar o seu lugar, até mesmo conduzir como um bom pastor as doces ovelhas da fila no São Luiz. E isso era uma perspectiva de domingo à tarde, na matinê, como na infância, em que se alegrava porque depois do filme haveria o cachorro-quente na porta. Então mais uma vez Carlos sorriu - poderia ser que as coisas se arranjassem, mais tarde.
Ao vê-lo assim, tão apolíneo, Samuel teve na boca um gosto de chá de capim-santo. Era um gosto associado à febre, acrescido ao chá, que sua mãe lhe dava.
- Do quê você está rindo? - Samuel perguntou.
- Nada - Carlos respondeu. - É que João insulta um filme que não conhece.
- Eu não insulto - João foi dizendo. - Eu estou falando do tipo de gente que assiste a esses filmes. Veja você, para dizer que a terra é redonda, basta-me ver o seu reflexo na lua mais adiante. Você não vê esse tipo de gente que se diverte dessa maneira? São uns idiotas.
- Sei, sei, - e Carlos se fez mais compreensivo, cordato. - Sei, mas não seria melhor pegar na terra mesma? Ver o filme? - E com o peito cheio de orgulho, como quem consegue um feito olímpico: - Eu vi. O filme é uma história razoável de amor. Eu lhes digo: tem fotografias belíssimas, uma música bonita, e o amor corre bem suave, fora do convencional.
- O que faz o casal, pra esse amor tão bonito? - João perguntou.
- Olha, eles se conheceram num internato, quando visitavam os seus filhos. Eles estavam sozinhos, viúvos, (“que coincidência”, João rosnou) , claro. O que eu acho legal é que a história tem uma aparência de encontro casual, que dá num amor que cresce. Isso eu achei legal.
- É uma grossa generalidade - João afirmou. - Isso poderia ser dito de qualquer encontro casual.
- Certo, mas o filme é assim. Você precisava ver o rosto da artista, a sombra, o frio. (“Naftalina”, Carlos ouviu, mas não soube de quem) O rosto dela dá encanto a qualquer história, por mais grossa. Aliás, eu pergunto: e precisa de história? Quem tem aqueles dois atores, uma música, e aquelas imagens, não precisa de história. Basta um abraço, um fundo musical, e uma lágrima.
- Era bom que na vida real fosse assim... - João começou a dizer.
- Era ruim - Samuel o interrompeu. - Eu não queria ter uma vida dessas.
- É que você não viu o filme - Carlos brincou, irônico. - Você precisava ver os barcos velejando, os jantares, o carro mustang, os hotéis ... a praia cheia de gaivotas. Os casacos de peles... - e Carlos abriu mais o sorriso: - ... a artista suspirando na cama... que mortal não queria ter uma vida assim?
João guardou-se mudo, em cerrado silêncio. Fitou com olhos grados a juventude bonita da fila. “Desse lado do rio não brota o amor”, foi pensando. “Daquele lado, nessa exibição de feminilidade, de feitiço, não existe amor. Existe competição, desejo de se mostrar vencendo as outras, para arranjar um bom partido. Ali não existe amor - por que, Deus, me dando a ciência de conhecer esta verdade, me fizeste tão fraco? Por que não consigo delas retirar os meus olhos? São tantas! Ali não existe o indivíduo de uma personalidade. Isso é um mercado, uma arena. São coxas, bundas e peitos num mar de vulgaridade. O que poderia ser belo é carne de jovens que têm a beleza de um açougue”. Então ele falou em voz alta:
- Bem-vindas as prostitutas! Este é o amor mais sincero que alcançamos.
Carlos sentiu um abalo. E perguntou:
- Por que você diz isso? Qual a razão?
João respondeu, apontando as pessoas na bilheteria:
- Isso é uma feira, meus amigos. Nós não temos dinheiro pra comprar.
Viram-se nus, acanhados na beira do rio. Essa coisa tão óbvia, elementar, não havia ainda sido dita. Carlos estendeu-lhe a mão, Samuel também, e pareciam dessa maneira selar um pacto de comum defesa, selado por três índios nus, à margem da rua civilizada. Nus, podiam dar as costas à rua, virando-se para o rio, antes que os descobrissem e os risos na fila estourassem. Um relato sentimental diria que aquela coisa simples de se vestir, perfumar-se, calçar sapatos novos, e entrar no cinema como os demais jovens, era para eles um degrau muito alto e inacessível. Daí, portanto, a mágoa, o ressentimento, assim diria um relato sentimental, que difama no mesmo instante em que proclama as intenções mais piedosas. Acontece que aquele selo de pacto opunha razões que não eram de mendicância ao gozo material, mais, opunha razões mais ambiciosas, que nada tinham de humildes, de personagens vestidos de coitados, ainda que estivessem nus. Era um não querer cravado de ressentimento, é certo, desdenhando uvas doces e maduras, também é certo, mas desdenhando as uvas porque desejava mais que as uvas, pois era o querer pleno de sorver e abocanhar todos os parreirais. Por ora desdenhavam-no, cumprindo uma necessária etapa.
Levantaram-se, juntaram os trocados. Foram a um boteco que descobriram atrás do cinema São Luiz, e esbravejaram com eloqüência durante meia garrafa de aguardente.
* Do romance Os Corações Futuristas.
** Jornalista e escritor
** Por Urariano Mota
No alto, anunciava-se, Um Homem, Uma Mulher.
As moças passavam pela Aurora, em frente ao São Luiz. Jovens tomavam o lugar na fila, mais venturosos. João se sentia como num pântano, e isso mais se realçava por sentir às costas o mangue das margens do Capibaribe. Era necessário entreter-se, enfiar-se furioso na discussão, para esquecer o lado onde se sentava, lugar de onde não brotava o amor. E sem fitar Carlos, nem Samuel, apenas olhando as colunas do cinema, que lhe pareciam frágeis, de papelão, e dirigindo-se em sentimento às jovens e suas pernas, a seu chilreio de pássaros que antegozam o namoro, ao sorvete, e à intimidade do escuro sob a grande tela, foi dizendo:
- Esse filme é uma merda. Isto a crítica não diz. Vejam as pessoas que entram! - e apontou-as.
Samuel acompanhou-o, concordando. O quanto era diferente aquela juventude da gente que descia e vivia na ladeira do sapoti. Devia haver alguma relação entre a gente que não tinha acesso àquela fita e a natureza da própria fita. Algum nexo causal, que não sabia expressar em boas palavras, mas que desconfiava, sintetizando-o nessa fórmula mais simples: aquilo era um cinema, uma fita burguesa. Mas como eram perfumadas e atraentes aquelas meninas de boas e carnudas coxas burguesas, quanta graça na sua leviandade e agitação de passarada! Isso ele gostaria de esconder, de não levar em conta, de fechar os olhos, mas quanto mais os fechava mais as via, indo até o fetiche, brincos, batom e ruge das meninas burguesas. Como casavam bem com o chocolate, com a pastilha, com o bater de sandálias dos seus pezinhos, com o lápis azul sobre as suas pálpebras, com a pulseira e aliança que rejeitavam cães sarnentos! Ah, era necessário o império da revolução para fazer juntar a cães piolhentos a fêmea que adentrasse o São Luiz com pé firme, renovada, superior, na arte que acentuasse o povo que não tem vez, que jamais teve. Algum nexo, Samuel sentiu, deveria haver. Esse nexo nem Carlos nem João percebiam, ele achava.
- Olhem bem a gente que entra! João exclamava.
Carlos compreendia o quanto havia de ressentimento no dedo de João que apontava, e sorria a isso, um sorriso que continha superioridade, agregada a uma íntima, doméstica simpatia. Parecia-lhe o irmão que deixara em casa, falando seus pensamentos de excluído pela boca de João. A superioridade em relação ao dedo, um dedo chagado de leproso na cova apontando na ribanceira os venturosos, era óbvia: Carlos poderia, mais cedo ou mais tarde, subir a rampa e ocupar o seu lugar, até mesmo conduzir como um bom pastor as doces ovelhas da fila no São Luiz. E isso era uma perspectiva de domingo à tarde, na matinê, como na infância, em que se alegrava porque depois do filme haveria o cachorro-quente na porta. Então mais uma vez Carlos sorriu - poderia ser que as coisas se arranjassem, mais tarde.
Ao vê-lo assim, tão apolíneo, Samuel teve na boca um gosto de chá de capim-santo. Era um gosto associado à febre, acrescido ao chá, que sua mãe lhe dava.
- Do quê você está rindo? - Samuel perguntou.
- Nada - Carlos respondeu. - É que João insulta um filme que não conhece.
- Eu não insulto - João foi dizendo. - Eu estou falando do tipo de gente que assiste a esses filmes. Veja você, para dizer que a terra é redonda, basta-me ver o seu reflexo na lua mais adiante. Você não vê esse tipo de gente que se diverte dessa maneira? São uns idiotas.
- Sei, sei, - e Carlos se fez mais compreensivo, cordato. - Sei, mas não seria melhor pegar na terra mesma? Ver o filme? - E com o peito cheio de orgulho, como quem consegue um feito olímpico: - Eu vi. O filme é uma história razoável de amor. Eu lhes digo: tem fotografias belíssimas, uma música bonita, e o amor corre bem suave, fora do convencional.
- O que faz o casal, pra esse amor tão bonito? - João perguntou.
- Olha, eles se conheceram num internato, quando visitavam os seus filhos. Eles estavam sozinhos, viúvos, (“que coincidência”, João rosnou) , claro. O que eu acho legal é que a história tem uma aparência de encontro casual, que dá num amor que cresce. Isso eu achei legal.
- É uma grossa generalidade - João afirmou. - Isso poderia ser dito de qualquer encontro casual.
- Certo, mas o filme é assim. Você precisava ver o rosto da artista, a sombra, o frio. (“Naftalina”, Carlos ouviu, mas não soube de quem) O rosto dela dá encanto a qualquer história, por mais grossa. Aliás, eu pergunto: e precisa de história? Quem tem aqueles dois atores, uma música, e aquelas imagens, não precisa de história. Basta um abraço, um fundo musical, e uma lágrima.
- Era bom que na vida real fosse assim... - João começou a dizer.
- Era ruim - Samuel o interrompeu. - Eu não queria ter uma vida dessas.
- É que você não viu o filme - Carlos brincou, irônico. - Você precisava ver os barcos velejando, os jantares, o carro mustang, os hotéis ... a praia cheia de gaivotas. Os casacos de peles... - e Carlos abriu mais o sorriso: - ... a artista suspirando na cama... que mortal não queria ter uma vida assim?
João guardou-se mudo, em cerrado silêncio. Fitou com olhos grados a juventude bonita da fila. “Desse lado do rio não brota o amor”, foi pensando. “Daquele lado, nessa exibição de feminilidade, de feitiço, não existe amor. Existe competição, desejo de se mostrar vencendo as outras, para arranjar um bom partido. Ali não existe amor - por que, Deus, me dando a ciência de conhecer esta verdade, me fizeste tão fraco? Por que não consigo delas retirar os meus olhos? São tantas! Ali não existe o indivíduo de uma personalidade. Isso é um mercado, uma arena. São coxas, bundas e peitos num mar de vulgaridade. O que poderia ser belo é carne de jovens que têm a beleza de um açougue”. Então ele falou em voz alta:
- Bem-vindas as prostitutas! Este é o amor mais sincero que alcançamos.
Carlos sentiu um abalo. E perguntou:
- Por que você diz isso? Qual a razão?
João respondeu, apontando as pessoas na bilheteria:
- Isso é uma feira, meus amigos. Nós não temos dinheiro pra comprar.
Viram-se nus, acanhados na beira do rio. Essa coisa tão óbvia, elementar, não havia ainda sido dita. Carlos estendeu-lhe a mão, Samuel também, e pareciam dessa maneira selar um pacto de comum defesa, selado por três índios nus, à margem da rua civilizada. Nus, podiam dar as costas à rua, virando-se para o rio, antes que os descobrissem e os risos na fila estourassem. Um relato sentimental diria que aquela coisa simples de se vestir, perfumar-se, calçar sapatos novos, e entrar no cinema como os demais jovens, era para eles um degrau muito alto e inacessível. Daí, portanto, a mágoa, o ressentimento, assim diria um relato sentimental, que difama no mesmo instante em que proclama as intenções mais piedosas. Acontece que aquele selo de pacto opunha razões que não eram de mendicância ao gozo material, mais, opunha razões mais ambiciosas, que nada tinham de humildes, de personagens vestidos de coitados, ainda que estivessem nus. Era um não querer cravado de ressentimento, é certo, desdenhando uvas doces e maduras, também é certo, mas desdenhando as uvas porque desejava mais que as uvas, pois era o querer pleno de sorver e abocanhar todos os parreirais. Por ora desdenhavam-no, cumprindo uma necessária etapa.
Levantaram-se, juntaram os trocados. Foram a um boteco que descobriram atrás do cinema São Luiz, e esbravejaram com eloqüência durante meia garrafa de aguardente.
* Do romance Os Corações Futuristas.
** Jornalista e escritor
Bela página de um livro muito bem escrito. A releitura deste texto é tão prazerosa quanto foi a leitura do livro.
ResponderExcluirQuem não leu "Os corações futuristas" precisa ler. é uma bela e triste historia dos tempos da ditadura com a mais linda capital brasileira servindo de cenario.
Abraços, Urariano
Eu também tive um Cine São Luis, e matinês em muitos domingos. A descrição entrou numa parte do túnel do tempo que nunca tinha imaginado. A juventude se lavava, e se vestia para ficar num mostruário. Descrição excelente do comportamento daquela época.
ResponderExcluirGrato, Risomar. Você escreveu sobre esse romance e o conhece bem.
ResponderExcluirSalve, Mara, Então você também teve um Cine São Luiz na sua vida?
Abração.