A
guardiã dos nossos sonhos
*
Por Urda Alice Klueger
Noutro dia falei aqui que adolesci no tempo em que amávamos os Beatles e os Rolling Stones. Não era bem assim. Eu amava era aos Beatles, aqueles rapazes de Liverpool que nos chegaram através do rádio, lá na década de 60, e que passaram a representar nossas ansiedades e nossos sonhos de adolescentes. Num primeiro momento eles nos chegaram como um frenesi, e nós, meninas de ginásio, tínhamos cada uma o seu preferido, sendo que Paul McCartney ganhava longe, embora o meu preferido fosse George Harrison.
Aos
poucos, as coisas foram se clarificando, e penso que já devia andar
pelo Científico quando John Lennon tomou à frente nas lideranças
entre nós, jovens, quando passou a se posicionar, decididamente, a
favor da paz. Vivíamos a Guerra do Vietnã, e John Lennon arranjou
um guru hindu e passou a falar da paz como ninguém ainda o tinha
feito para nós.
Houve
um tropeço nas nossas emoções, então: de repente, John Lennon
separa-se da sua primeira mulher, e quase que da noite para o dia,
casa-se com um ser estranhíssimo chamada Yoko Ono. A imprensa
explorou amplamente sua lua-de-mel onde os dois, vestidos de branco,
recebiam os repórteres na cama, e outras coisas assim, e ajudou a
criar uma boa revolta nossa contra aquela mulher que parecia ter
vindo para criar complicações. Naquele período, a Segunda Guerra
Mundial ainda era muito próxima, e não tinham sido os japoneses os
vilões da História, com direito a experimentarem as duas primeiras
bombas atômicas do mundo e tudo? Nossa cabeça formada pelas
Seleções do Reader’s Digest não aceitava com nenhuma facilidade
aquela japonesa na vida do nosso ídolo, ainda mais considerando o
fato de a acharmos feia, e sabermos que era mais velha que ele. Como
daí a pouco os Beatles se separaram, na nossa cabeça a culpa era
dela, bem dela.
A
História encarregou-se de nos mostrar que Yoko Ono nada tinha a ver
com as nossas mágoas adolescentes. Nosso amor pelos Beatles nunca
morreu (amor verdadeiro não morre mesmo), especialmente por John
Lennon, que, entre outras coisas, nos deu aquela pérola chamada
Imagine, que, entre outras coisas, diz :
“ ...Imagine
todos vivendo a vida em paz
todas
as pessoas partilhando o mundo inteiro
Você
pode dizer que sou um sonhador
mas
não sou o único...”
Daí,
um dia, um louco foi lá e matou aquele doce e meigo gênio que nós
amávamos profundamente, e a nossa dor era tão grande com a perda
dele, que transferimos todo aquele nosso grande amor para sua viúva,
Yoko Ono, que víamos a chorar pelos corredores de Nova York, e até
hoje me emociono até às lágrimas quando a vejo.
Então,
um dia uns caras foram lá e jogaram uns aviões sobre uns prédios
nos Estados Unidos. Foram cenas vistas ao vivo pelo mundo inteiro, e
um sangrento desejo de vingança tomou conta do presidente e da
maioria da população daquele país, e passou-se a se querer muito
uma guerra para se lavar a honra daquele povo que se sentia
ultrajado. Naquelas primeiras semanas depois do 11 de Setembro de
2001, nenhuma rádio estadunidense tocava nenhuma música que falasse
em paz; nenhum filme sobre tal tema era mostrado, tamanho era o
desejo de guerra que por lá havia.
Então
foi ela, Yoko Ono, aquela a quem tínhamos detestado no começo, que
lavou a nossa alma: ela comprou uma página inteirinha do New York
Times (só imagino quanto terá custado!), e mandou publicar nela a
letra da música Imagine. Fazia tempo que a gente já sabia que ela
era a Guardiã dos Nossos Sonhos, mas naquela ocasião ela como que
recebeu o grau máximo da nossa emoção. Também por causa dela,
sabemos hoje que o sonho não acabou.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de
2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
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