Adriano
Espínola e a beleza das arraias no céu
* Por
Nilto Maciel
Passei
grande parte da vida a girar em torno de mim mesmo, mãos na linha
que empinava pipas coloridas, olhos no céu sem nuvens e nos urubus.
Quando conheci Adriano, meu mundo girava em torno de um saco de
papel. Era 1976 e preparávamos o nascimento da revista O
Saco.
Um dia, saímos, Carlos Emílio e Jackson Sampaio, à cata de gênios
nos pátios da Universidade Federal do Ceará. E vimos um sujeito
desgrenhado, calças frouxas, a carregar um matolão de livros. Quem
é este doido? Apresentaram-me o estranho. Formado em letras no ano
anterior, Adriano dava aulas na jovem Unifor (Universidade de
Fortaleza). Só isso? Não, isto é só a casca. Lembrei-me da
cantiga de Reis:
“Esta
casa está bem feita
Por
dentro por fora não
Por
dentro cravos e rosa
Por
fora manjericão”.
Carlos
e Jackson completaram: Este é o melhor poeta cearense da nova
geração. Tem livro? Ainda não.
Fomos
para a vida, eu para a revista, ele para a UFC, como professor.
Passado um ano, fugi para Brasília e perdi de vista o poeta. Vivia a
ler e escrever, além de trabalhar muito. Numa noite fria, a
bebericar conhaque e ler Fernando Pessoa, ouvi o tilintar do
telefone. Assustei-me. Seria minha mãe? Tão doente nos últimos
anos! No dia seguinte, Adriano e Moema bateram à minha porta.
Prometemos, aqui estamos. Na sala, ainda sem muitas falas, chamei por
Fernanda e Menita (um e dois anos de idade). Venham, filhas, conhecer
o poeta Adriano Espínola e sua mulher. Sentaram-se em minhas pernas.
Fernanda olhou de soslaio para o poeta: Você voa? Adriano gargalhou.
Eu costumava lhes dizer: Poetas são seres mitológicos, que voam,
aparecem e desaparecem num piscar de olhos, feito pirilampos. São
bons ou são maus? Eu tentava explicar minha noção de poeta e mais
me embaralhava. São bons, mas há quem veja neles o mau. Adriano e
Moema não conseguiam parar de rir. Não assuste as crianças, Nilto.
Então falemos disso e daquilo, livros, Fortaleza, amigos.
Combinamos, para a manhã do outro dia, uns passeios pela cidade que
eu mal conhecia. Acordei cedo e os esperei para um sábado no
Planalto Central do Brasil: um clube social, uma banda barulhenta a
tocar a pior das músicas, Moema, recém-operada, a se queixar de
dores, o poeta muito aflito, eu a ver de perto ombros rosados, pernas
roliças, bustos ardentes, biquínis sumidos.
Em
81, Adriano publicou Fala,
favela e
me mandou um exemplar. Sofri terrível impacto. Aquela poesia me
deixava doidão. Ao meu redor só havia poesia debochada demais, a
chamada poesia marginal, ou o seu antídoto, uma poesia sofisticada,
de difícil entendimento, com se feita de lantejoulas sobre lentes e
jaulas. No decorrer da leitura (menos assustado), senti uma fisgada
no córtex cerebral. Aquilo dava um romance. E assim nasceu Estaca
Zero,
publicado em 87. Batista de Lima, no artigo “A estética de um
ritual”, acertou na mosca: “Aliás, lembra muito o episódio da
‘Favela da José Bastos’, que alguns anos atrás irrompeu num
subúrbio da capital cearense. Talvez seja a forma romanceada do
episódio, já que o mesmo apareceu em forma de poesia, através
de Fala
Favela de
Adriano Spínola e teatralizada posteriormente pelo Grupo Grita”. A
filiação de meu livro era clara. Na folha de rosto estampei esta
dedicatória: Para o Poeta Adriano Spínola, que escreveu o auto do
desabrigo nordestino – Fala
Favela.
Por
esse tempo, Adriano já andava pelo Rio de Janeiro (mestrado em
Teoria Literária) e praticava voos mais altos (talvez não fossem
voos, mas deslocamentos terrestres mesmo), ao publicar o
volume Táxi (que
me causou outra comoção violenta) e partir para a França
(certamente pelos ares), a fim de assumir a cadeira de
professor-leitor na Université Stendhal Grenoble III (ensinava
Cultura/Literatura e Língua brasileiras). Passamos uns tempos sem
contato, eu em Brasília, ele no mundo (Festival Internacional do
Mundo Latino, em Bucareste; 18º Salão do Livro, em Paris; Congresso
de Escritores Brasil-Portugal, no Porto). Eu em vias de me aposentar,
ele a se doutorar na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Apesar
dessas distâncias, o mundo é pequeno e somos cearenses. Ou seja, um
dia estaríamos de novo frente a frente, aqui em Fortaleza, em Paris
ou na Lua. E estivemos mesmo, por diversas vezes, ora em bares, ora
em livrarias, ora em calçadas. Numa delas, num restaurante próximo
à casa de seus pais, bebemos cerveja, comemos pastéis, falamos de
nossos amigos, nossos livros, a vida. Pedi-lhe desculpas por um
incidente: Astolfo Lima “descobrira” um plágio em Táxi,
(seria uma recriação de Zazie
no Metrô,
de Raymond Queneau), escrevera um conto (suposto plágio do poema) e
me solicitara a publicação de ambos (a explicação do plagiato,
intitulado “Meu exercício de estilo”, e a narrativa) na
revista Literatura.
Não concordo com a opinião de Astolfo, já ouvi falar de
intertextualidade, nunca li Queneau, cometo paródias e, não fossem
gregos, troianos, judeus, árabes e toda a humana raça, eu não
estaria aqui neste ziguezague de letrinhas. Por outro lado, leio na
prosa de Astolfo muito talento e inventividade e só não o adoro
(assim como não adoro Adriano) porque não sou de adorar ninguém,
por falta desse espírito religioso que afeta tanta gente. Cometeu um
engano, sim, mas isto é perdoável. E Adriano sabe também que a boa
literatura está repleta de enganos. E desenganos.
Peço-lhe
desculpas, poeta. Olhou para mim, beijou Moema e sorriu. (É por isso
que eu dizia a minhas filhas: os poetas são seres muito bons).
Sorriu como os meninos que empinam arraias e disse: A Poesia é tudo
isso e mais o que de mais humano houver.
Fortaleza,
19 de maio de 2011.
*
Escritor cearense
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