sexta-feira, 3 de julho de 2015

Qual o gênero da cidade?

* Por Urariano Mota


O título que acabei de riscar era “qual o gênero do nome Recife?”. Em lugar de “nome”, preferi deixar “cidade”, porque acho mais próprio ao desenvolvimento destas linhas. Tentarei explicar a mudança.

Quando escrevo “nome do Recife”, me prendo logo a razões gramaticais, de gêneros do substantivo, que descem no tempo até os primórdios da etimologia. Menos, como desejo, e até para melhor segurança dos meus conhecimentos da língua. Mas não aprofundar não é o mesmo que o desconhecimento absoluto. Ou seja, o nome “recife” é sinônimo de “arrecife” nos dicionários, conforme se vê no Houaiss, onde a abreviatura ocn significa oceanografia:

“substantivo masculino; 1. ocn formação rochosa, à flor da água ou submersa, ger. próxima à costa, em áreas de pouca profundidade; arrecife, arrife; 2. fig. p.ext. obstáculo difícil; estorvo”

Ou no Aulete:
“sm. 1. Rochedo ou conjunto de rochedos perto da costa ou a ela ligados, submersos ou um pouco acima do nível do mar; ARRECIFE; ESCOLHO. 2. Fig. Estorvo, obstáculo, contrariedade”.

Se não bato no obstáculo, devo acrescentar que o batismo da cidade veio desses muros aflorados por milênios na costa pernambucana: arrecife, ou Recife. O nome é masculino desde a origem. No entanto, sei por experiência que devemos sair da visão etimológica, porque ela se esvai nos costumes dos dias presentes. Imaginem o que seria a comunicação se conversássemos usando palavras no significado etimológico. Cairíamos numa comédia do diálogo entre um homem do século XVI com outro do século XXI.

Afinal, estamos falando da cidade, do que ela tem sido, é. Não falamos mais, há séculos, do muro na entrada do cais do porto. Para esclarecer o gênero, penso que devemos partir do histórico mais perto deste 2014. Melhor, devemos vir do histórico que se fez civilização, dos poetas e escritores que falaram e falam da cidade no gênero que ficou, por força da arte e do pensamento. Pois não é próprio e legítimo estabelecer pontes entre o gênero prático e o gênio poético?

Assim, desde o título do seu grande poema, Manuel Bandeira canta no masculino o substantivo, o artigo definido e os adjetivos na Evocação do Recife:
 “Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois...
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro   
como a casa de meu avô”.

Assim Carlos Pena Filho nos conduz na fluência do Guia Prático da cidade do Recife. Em todos os versos a cidade é masculina. Assim também o masculino da cidade em João Cabral de Melo Neto, onde o Recife aparece evidente com seu nome ou implícito, como ele já afirmou em entrevista:

"Meu primeiro poema foi publicado em 1942 no Recife, mas não tinha nada a ver com a cidade. Era de influência surrealista. Tenho 180 poemas escritos sobre Pernambuco - a maioria deles sobre o Recife e seu Rio Capibaribe. E escreveria outros tantos se pudesse. A veia inspiradora do Recife não morre, porque a cidade continua a existir. Persiste a atmosfera de miséria que inspirou, por exemplo, O Cão Sem Plumas, de 1950, ou Morte e Vida Severina, de 1954. Sempre escrevi poemas sobre o Recife longe da cidade”. Ou aqui nos versos:

“Em meio à bacia negra
desta maré quando em cio,
eis a Albufera, Valência,
onde o Recife me surgiu...
 Todas lembravam o Recife, 
este em todas se situa, 
em todas em que é um crime 
para o povo estar na rua”.

Mais, poderíamos citar todos os grandes poetas de Pernambuco, que sempre se referem à cidade no masculino. Além de João Cabral, Manuel Bandeira e Carlos Pena Filho, as citações iriam de Ascenso Ferreira e Joaquim Cardozo a Mauro Mota e Alberto da Cunha Melo. Com direito de passagem, é claro, pela tradição pernambucana, que atende pelo nome de Gilberto Freyre: "O recifense diz ‘Chegar ao Recife’, ‘Vir para o Recife’, ‘Sair do Recife’, ‘Voar sobre o Recife’". E Gilberto Freyre, com a graça de sempre, afirmava que somente a gente de fora se referia à cidade sem o artigo masculino.

Se saímos da tradição literária da cidade, temos a graça de ouvir na música popular o compositor e cronista Antonio Maria. Ele canta e nos encanta até hoje com “sou do Recife com orgulho e com saudade”, e mais “que adianta se o Recife está longe, e a saudade é tão grande que eu até me embaraço”. Como esquecê-lo ou negá-lo?

Falar, dizer dE Recife, Em Recife, ou Recife sem o artigo masculino antes, é o mesmo que renegar as mais belas vozes da cidade, e assim desprezar o excelente, que é o modo mais vil de ignorância. No entanto, a mídia do Sul e Sudeste algumas vezes claudica no gênero da cidade. E mais sério, acha que escrever Em Recife ou nO Recife é uma questão menor. Os seus consultores de língua portuguesa, se interrogados sobre o uso correto, respondem que tanto faz, quando de modo mais claro responderiam: para a importância periférica do lugar, tanto faz escrever dE Recife ou dO Recife. O que vale dizer: seria o mesmo que exigir correção diante de um nome tupi conforme as regras da fala dos índios.

Já houve até gramáticos, como Napoleão Mendes de Almeida, que tiveram a pretensão de nos ensinar a falar o nome da nossa cidade. Ensinar tupi aos tupis? Pois assim nos ensina o senhor Napoleão:
“Se a cidade de Pernambuco nasceu num recife, o recife é precisamente essa parte inicial, e o Recife é o nome desse bairro de Recife, conforme se vê em planta da cidade. Não estranhe o leitor que em Recife alguém lhe diga: 'Preciso ir ao Recife pagar uma conta'. Porque está ele, o falante, a se referir à parte antiga da cidade, ao bairro do Recife, onde se encontram as docas, importantes repartições de serviços públicos e grandes escritórios...

Ao chamar hoje Recife de "o Recife", não há tradição. A tradição é a que por nós foi testemunhada quando aí estivemos. Veja-se para confirmação, a fotografia que se encontra na página 51 do Guia prático, histórico e sentimental de Recife, de Gilberto Freyre, embaixo da qual está escrito: '... ao pé de uma ponte que liga o bairro de Santo Antônio ao do Recife'

E quando em Recife diz alguém: 'dentro do Recife', ele está a especificar mais pormenorizadamente ainda o Recife (bairro), pois com essa expressão ele passa a se referir à zona do meretrício de Recife." 

Registro na citação acima duas impropriedades. Na primeira, o sabido Napoleão alterou o nome do livro de Gilberto Freyre, que é Guia prático, histórico e sentimental dO Recife. Na segunda, o zeloso gramático omitiu o texto de início da legenda da foto da página 51 do Guia: “Reprodução de foto raríssima do fim do século XIX, vendo-se um recifense a defecar napolitanamente à beira do Cabibaribe, ao pé da ponte...”. Mas não nos percamos.  

Tanto na mídia do Sudeste quanto na aula de tupi para tupis de Napoleão residem um desconhecimento soberbo, à beira da soberba, do que entendem como a tradição dos periféricos. Mas acredito que o tempo, a razão e o sentimento voam para o nosso lado. De modo mais soberano, mas sem insulto, pois não estamos “para fazer barulho”, como canta o frevo Madeira que cupim não rói, de Capiba:

“Não vem pra fazer barulho
Vem só dizer
E com satisfação
Queiram ou não queiram os juízes
O nosso Bloco é de fato campeão
E se aqui estamos
Cantando essa canção
Viemos defender
A nossa tradição...”.

Aqui junto a nós, ao fim, o sentimento também canta, porque nos fala e diz: o Recife é fêmea, como fêmeas são todas as cidades. Mas o Recife masculino vem do seu útero. Toda a cidade do Recife é um abrigo, residência, identidade, modo de ser e origem, do útero fecundado. Por isso dizemos nO Recife, dO Recife, para O Recife, O  Recife. O que significa: o amor mais fundo pelo útero desta cidade.

(Do livro "Dicionário amoroso do Recife")

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.


Nenhum comentário:

Postar um comentário