quinta-feira, 5 de março de 2015

Testemunha de um tempo e de uma cidade

O Rio de Janeiro em que Machado de Assis nasceu, cresceu, amadureceu (física, intelectual e literariamente), viveu, morreu e onde está sepultado era (óbvio) muito diferente da vibrante (posto que tão problemática), metrópole atual. Dessa que se prepara intensamente para receber a primeira olimpíada a ser disputada na América do Sul: a de 2016. Fosse a mesma, ainda hoje, seria o mais atrasado dos burgos de algum dos mais remotos grotões deste país-continente, em termos de “modernidade”. Quando o escritor nasceu, a cidade não tinha, por exemplo, esgoto, eletricidade, que ainda nem havia sido descoberta e domesticada em lugar algum, e muito menos ali e eram raríssimas as ruas (praticamente meras picadas) que dispunham de algum tipo de calçamento. Não tinha telefone, ônibus, trens, automóveis, nada. Rigorosamente nada, em termos de conforto e de recursos mínimos de comunicação e de transportes. Não dispunha de cinema, de rádio, de televisão e de nenhum meio de difusão e de entretenimento dos tempos atuais.

O Cristo Redentor? Nem pensar! Como também sequer se cogitava, nem mesmo em sonhos, de um Maracanã. Afinal, o brasileiro desconhecia o futebol, esporte exótico que recém surgia entre a elite, entre a nata dos estudantes ingleses de famílias abastadas. Mesmo quando finalmente chegou ao Brasil, em fins do século XIX, Machado de Assis não lhe deu nenhuma importância. Claro que Copacabana, Ipanema, Leblon etc., enfim toda a charmosa Zona Sul, com seus arranha-céus imponentes, seu trânsito agitado, seus bares e boates e suas praias sempre lotadas de cariocas e de turistas provenientes de todas as partes do Brasil e do mundo não tinham nada, nadíssima da realidade de hoje.

Bondinho do Pão de Açúcar? Ora, ora, ora... Escolas de samba? Também não se pensava nisso! Aliás, o próprio ritmo nem mesmo havia sido criado ainda, embora houvesse seu “embrião”, o que viria a redundar nele, mas restrito aos terreiros de escravos. A escravidão, recorde-se, era coisa “normal” no Brasil (e, claro, no Rio de Janeiro), símbolo, até mesmo, de “status” da elite endinheirada  Enfim, a cidade não tinha coisa alguma do que hoje caracteriza essa metrópole vibrante, que reúne, à beleza natural com que a natureza a dotou, de magníficas obras humanas, o que faz dela a maravilha dos trópicos, esta Cidade Maravilhosa que tanto encanta e fascina quem a conhece e que desperta curiosidade e fantasias em quem contempla suas imagens por fotografias, por filmes e por transmissões de TV.

O Rio de Janeiro, porém, tem que ser avaliado no seu devido contexto. E a cidade de quando Machado de Assis nasceu já era, disparado, a mais importante do País e, atrevo-me a dizer, da própria América Latina. Era a capital, por exemplo, de um vasto, mas despovoado, Império, recém independente. Na época do nascimento do escritor (em 21 de junho de 1839) o Brasil estava prestes a completar escassos dezessete anos de nação independente. Estava sob o regime de regência provisória, dada a minoridade de Dom Pedro II, a quem caberia, constitucionalmente, ocupar o trono assim que se tornasse maior de idade, após a abdicação do seu progenitor, o polêmico “pai da independência” brasileira. Lutava para conservar a unidade política e territorial, diante dos inúmeros movimentos separatistas que pipocavam de Norte a Sul de seu vasto território, carente de comunicação.

Machado de Assis, que praticamente nunca se afastou do Rio de Janeiro em toda sua vida – a exceção foram duas viagens à cidade serrana de Nova Friburgo, para onde viajou por questões de saúde – testemunhou toda a evolução, a metamorfose, o vertiginoso progresso da sua terra natal. E não somente se limitou a testemunhar, como registrou tudo isso em seus livros, nos romances e contos que escreveu, em que a hoje vibrante metrópole foi até mais do que mero cenário. Foi, sem exagero, personagem “viva”. Ele viu (e registrou) a chegada da eletricidade, o advento do bonde, a implantação da telefonia, as primeiras experiências com o cinema e até a chegada do automóvel. Descreveu pessoas, “analisando”, até mesmo, o que elas pensavam e por que (antecedeu dessa forma em alguns anos Sigmund Freud, pai da psicanálise, na análise das motivações e atitudes humanas) com suas modas, costumes, formas de se divertir e de ganhar a vida etc.etc.etc. Enfim, testemunhou fatos e hábitos de seu tempo, como convém a bons escritores. E ele, nem é preciso reforçar, foi excelente, foi inovador, foi genial!

Cito (apenas a título de exemplo) – citação que “empresto” de Lúcia Miguel Pereira, uma de suas principais biógrafas – a descrição que Machado de Assis fez do casarão principal e da capela da chácara do Morro do Livramento em que nasceu: "A casa, cujo lugar e direção não é preciso dizer, tinha entre o povo o nome de Casa Velha, e era-o realmente: datava dos fins do outro século. Era uma edificação sólida e vasta, gosto severo, nua de adornos. Eu, desde criança, conhecia-lhe a parte exterior, a grande varanda da frente, os dois portões enormes, um especial às pessoas da família e às visitas, e outro destinado ao serviço, às cargas que iam e vinham, às seges, ao gado que saía a pastar. Além dessas duas entradas, havia, do lado oposto, onde ficava a capela, um caminho que dava acesso às pessoas da vizinhança, que ali iam ouvir missa aos domingos, ou rezar a ladainha aos sábados".

Essa descrição consta do livro “Casa Velha” (publicado em 1943 graças ao empenho de Lúcia Miguel Pereira), estampado, originalmente, em forma de fascículos, entre janeiro de 1885 e fevereiro de 1886, na revista carioca “A Estação”. Cito, também, trecho do excelente texto, datado de 1º de setembro de 2008, do saudoso jornalista e escritor Daniel Piza (a respeito de quem discorrerei, com mais detalhes, oportunamente) em que ele descreve qual era o cenário da meninice de Machado de Assis e como a cidade se transformou ao longo de sua vida: “O Rio de Janeiro de sua infância era o do morro do Livramento e da região próxima ao cais, uma grande vila de ruas estreitas onde os dejetos das casas eram levados por negros em tinas na cabeça e lançados ao mar. Lampiões de azeite de peixe faziam a iluminação e cavalos e burros garantiam o transporte. Machado viu sua cidade ganhar bonde, ferrovia, iluminação elétrica, avenidas, telégrafo e bolsa de valores. Antes de morrer, ainda acompanhou o surgimento dos carros e dos precursores do cinema”. Testemunhou tudo isso e registrou para a posteridade.

Boa leitura.

O Editor.

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