A última partida
* Por
Aleilton Fonseca
Num mais que de
repente, Linco ia se levantar dali de um pulo, com sua risada de mangação. A
certeza nos aliviava, por ora, de uma dor mais funda. Pois se ele era tão
fingido, nos metendo cada susto! Era só um esperar, os adultos se preparassem,
que nem precisava lotar a sala de tanta gente para o maior efeito. Ele estava
debaixo do lençol, bem quietinho, sobre o banco de madeira rústica. A gente
queria ver de perto, era difícil.
Linco era assim mesmo,
imprevisível, sempre que presepando coisas. Na maré, que corria ao fundo de
nossas casas, ele inventava ondas. De uma vez das tantas, tomávamos um banho
num fim de tarde. De mergulho em mergulho, ele sorveteu-se nas águas; nós
esperamos que voltasse à superfície... e nada! Caímos em desespero:
– Linco sumiu, gente!
– Ele se afogou!
Os companheiros e eu
tremíamos de assustados, quase nem tomando o ar correto, a gente escarafunchava
as águas, nos mergulhos de busca. Abríamos os olhos, que ardiam, mais do que
salinados, já com as lágrimas brotando.
– E agora?
Um silêncio nos
assaltou, a maré nos pareceu monstruosa, doida para nos engolir também.
Mergulhar desse jeito afoito dava logo um cansaço. A gente precisava boiar
juntos, de mãos dadas, desfadigar. Então, ouvimos o desgramado, que saboreava a
maior gargalhada, se enganchando nos galhos do manguezal. Ele prendera o fôlego,
nadara por debaixo, voltando à tona escondido nas ramagens. Tudo isto um
apronte só, o tinhoso, para colher de nós uns risos sem graça entre a raiva e o
alívio.
Agora, ali na sala,
cadê que não se denunciava logo em nova traquinagem? Acontecera de supetão,
corremos à casa de Linco, depois de um certo rebuliço havido por lá. De logo a
gente não dava passagem ao real, ele deixasse de manha! Isto já estava para lá de
um despropósito. Era um demais, pois olhem o estado da mãe, coitada!
Estávamos atordoados,
acotovelando-nos entre os adultos. Encostados à parede, a gente se firmava na
ponta dos pés. O manhoso se levantaria dali – é claro! – dando o maior susto no
povo. Era o caso para umas boas risadas. Linco estava para além das margens,
nos seu exagero. Depois, depois...
Mas, que manchas eram
aquelas, de um modo avermelhado, ensopando uns quantos pontos do lençol? A
gente espichava-se em mais um apuro de prestar atenção. Linco, ali debaixo,
encoberto, a mãe dele se desconsolava num canto, amparada no abraço da irmã.
Dona Aurora se revelava em desespero, uma noite imensa invadia seu rosto e já
clareava o nosso entendimento. Houvesse mais coração para tanto pulo, a gente
se via à beira de um choque. Mas como podia ser isso com ele? E com cada um de
nós também podia, pois lençol, banco e sala todos tínhamos em casa.
Era um sábado. E
amanhã haveria o jogo de bola, nosso time todo montado nos acertos de Linco.
Era a final do campeonato de bairros, que a gente mesmo organizava para
distrair aos domingos. Ponta da Pedra, nosso esquadrão azul e branco, trajando
as camisas que a Prefeitura nos dera, por pedido escrito e insistências de
Linco. E o adversário não era mole! Enfrentar as feras do Malhado, uns até mais
velhos que nós, e bons de bola, era fogo. Mas Linco bem que traçara uma tática
nova. Como líder e goleador, garantia que íamos ganhar o troféu. E até fizera
aposta de honra contra o dono do time inimigo. Quem perdesse teria de tomar
banho no rio, todo nu, calado, sem poder revidar a gracejos nem gozações.
Agora, porém, eis que
Linco... Mas como foi? Por quê? De déu em déu, a história se desatava nos
sussurros, mas, para a gente, não assentava por certo haver o amigo em tal
estado. Linco fora cedo para a praia desafiar as ondas, como gostava de fazer.
Na volta, acabara recolhido naquela situação.
Este fato era difícil
aceitá-lo, aquilo é que não podia! Linco desistisse do mau gosto, fosse dormir
mais cedo que amanhã haveria um jogo duro. O time do Malhado não alisava, com
suas jogadas e tramóias, dava de seis a zero na gente com facilidade. Mas,
isto, só se Linco não jogava. Era quando ele ia cumprir as ordens da mãe, fazer
lição de casa, estudar para as provas, sem outro jeito de escapar.
– Primeiro a
obrigação, depois a distração, – era o lema de casa.
Sem Linco nosso time
era pato. Com ele sobravam as diferenças. Sob o seu comando a gente não se
intimidava. Ele arranjava sempre uma das suas mais novas artimanhas. De cochicho
em cochicho nos dava todas as dicas, nos colocava na função certa em cada parte
do campo. A gente perdia por placar apertado, sem fazer feio. Outras vezes
íamos vencendo, com sorte e com jeito. Foi assim, de gol em gol, chegamos à
decisão do torneio, para surpresa de todos.
De uma outra vez,
estávamos abatidos no aperto de cinco a zero, numa partida de seis. Era justo
contra o temível Malhado. Perder de seis a zero, uma lavada para dúzia e meia
de gozações! Nosso craque esmoreceu, comentava alto para todos:
– O jogo está perdido,
não adianta! – e atirava a bola para o lado, atrasava-a para o goleiro.
Linco era o único
jogador de nosso time que inventava medo aos adversários. Mas, naquela altura
do jogo, parecia preso por um cansaço. Perambulava em campo, quieto, sem dar
parte na disputa. Os caras do Malhado relaxaram, deram por ganho o combate. Era
só questão de a qualquer momento marcar o gol de misericórdia e ir mergulhar no
rio, zombando de nosso “timinho”. Eles começaram a fazer firulas, com toques
desconcertantes e às gargalhadas, dando um banho de olé na gente. A platéia de
fora se deliciava. Os demais meninos de nossa rua, entre aflitos e conformados,
se contorciam. De repente, apertamos a marcação, a bola deu rebote e foi
quicando de flerte com Linco. Ele a tocou como quem não quer nada e, sem mais
nem menos, inventou um chute torto e certeiro. No ângulo. Este gol nem o
comemoramos dada a indiferença do próprio artilheiro.
– É o gol de honra –
ele murmurou, cabisbaixo.
Os meninos de Malhado
nem sequer se assustaram. Continuaram desperdiçando as chances de vencer, mais
interessados em nos dar aqueles dribles, colocando a gente na roda de bobo. Lá
vai, de novo, a bola lhes escapava. Linco apanhou a sobra e lá se foi nas
fintas; deu um chute, agora chocho e enviesado, deixando o goleiro com cara de
besta.
– Este é para a
goleada não ficar muito feia – ele comentou, sem alarde.
A coisa ficou por
conta. O pessoal do Malhado se ressabiou, atirando-se todo ao ataque, seis a
dois ainda renderia uma boa pilhéria. Já o nosso goleiro, mais animado, se pôs
a subtrair os graus dos piores ângulos. E a bola passava raspando, mas não
entrava. Eu, reles zagueiro, com as canelas ardendo, me afogava no suor.
Chutava para qualquer lado, procurando acertar as moitas de capim bravo, que
dava tempo de respirar um alívio. E Linco, rente ao meio de campo, estava só
que olhava o jogo acirrado sobre nossa defesa, num desinteresse de irritar. Lá
um lance, a bola rebateu em minha cabeça e se foi aos caprichos de Linco, num
contra-ataque fulminante. Ele rompeu nas costas de um zagueiro que perseguia as
suas pernas serelepes. Não houve senões, o goleiro avançou firme, mal-encarado.
Linco ziguezagueou-lhe um drible e o plantou na lama, com a bola na rede.
Cinco a três era já um
acinte, os caras do Malhado endureceram de vez, dando-nos rasteiras e pontapés
explícitos. E já se desentendiam em campo, trocando entre si uns feios
xingamentos. Linco, sempre em surdina, de cócoras, em campo, colhia uns
matinhos e os mastigava, todo matreiro. Num avanço da defesa, o Malhado quase
lavrava a fatura, mas nosso goleiro operou a mágica com as pontas dos dedos. A
bola sobrou na minha frente, eu a chutei a esmo, sem querer encontrei Linco e
já fui vibrando contrito, o gol era questão de segundos... pronto! O jogo em
quase que empate. Cinco a quatro feria a honra do Malhado. Eles deram a nova
saída, com as caras entufadas. O jogo passava dos limites. Nesta demora, as
cigarras já nos recomendavam recolher a bola, a tarde já se ia turvando.
Já entendíamos o plano
de Linco: ele se fazia de morto para ser visitado. Os malhadenses discutiam
forte, erravam passes, os afobados, numa ânsia de nos liquidar de vez com o
sexto gol. Armaram um abafa sobre nós, chutaram um petardo venenoso, nosso
goleiro espalmou para escanteio. Linco intuiu o lance e recuou para nos ajudar.
A bola alçada à nossa área, ele a matou no peito e a pôs no chão em desabalado
rompante. Os caras, desesperados, gritavam para os da defesa:
– Pega! Agarra! Não
deixa!
Qual o quê?! Linco
rodopiava, deixando os zagueiros para trás, pulava para escapar de uma
rasteira, se retorcia todo mole para fugir dos agarrões. E pimba! Entrou com
bola e tudo, deixando o goleiro órfão e humilhado, prestes ao choro. Eis aí,
mestre Antonio: o jogo estava empatado! Os “craques” do Malhado caíram de suas
torres, fulminavam-se uns aos outros com raiva e nos assassinavam com o olhar.
Culpavam a defesa e o goleiro, que maldiziam os atacantes. A gente nem tico nem
taco! Era só tocar a bola, de olho nas treitas de Linco.
– Quem fizer um gol
ganha! - o maioral deles vociferou o óbvio.
A gente conspirava em
silêncio. O Malhado se perdia de vez em campo. Mas insistia, desordenado, em
busca do último gol. Nossas pernas se multiplicavam, na resistência. Mais
tarde, um menino vinha decretado com um aviso. A mãe de Linco o estava
chamando, era a ordem de ir para casa. A gente queria aproveitar a chance de
vencer, mas sem ele no ataque não dava.
– Vamos ganhar logo,
que eu estou de partida.. – ele disse, bem animado.
Linco correu até a
defesa, pediu a bola ao nosso goleiro, levantou a cabeça com ímpeto e irrompeu
contra o time do Malhado. Ele sorria e avançava. Eu o segui de perto, vibrando.
Na minha frente desenhava-se um ziguezague: driblou um adversário, dois, três
quatro... Arremeteu contra o goleiro deles, que saía do gol fechando o ângulo.
Linco parou, como só ele parava, deu um toque sutil e saiu de lado. O gol
estava diante dele, entregue e escancarado. Houve ali uma expectativa, o jogo
já terminava. E ele me ofertou a bola: Terto, faça o seu gol!”. Eu, simples
zagueiro, jamais provara aquele sabor. Então eu mesmo rolei, bem de levinho: e
a bola foi sorrir no fundo da rede.
Todos corremos para
ele e gritávamos gol e nos abraçávamos, era a virada de seis a cinco. O invicto
Malhado enfim derrotado, diante da platéia surpresa ao redor do gramado. Contra
a nossa festa, o líder deles jurou vingança, de cara amarrada:
– Na próxima vocês vão
ver!
Saíam de campo sem
graça, mais que inconformados. A gente degustava a justa vez de zombar:
– Oh, timinho de patos
E agora? Amanhã era a
final, contra o ferido time do Malhado, cheio de brios pela revanche, com um
ressentimento bairrista demais. Prometiam nos bater de seis a zero. Eis que era
chegada a hora, e Linco naquele pior estado. A par de tanta tristeza, as nossas
lágrimas prosperavam, renovando-se nas lembranças daquelas glórias repassadas.
De nossa parte, era a vez primeira de enfrentar esse tipo de jogo, totalmente
vencidos. E cada um de nós compreendia, a seu modo e tanto, o quanto gostávamos
daquele menino. No entra-e-sai da sala, ninguém podia efetuar o total que
sofríamos. Sem o nosso amigo, sentíamos o vazio de uma enorme parte de nós
mesmos. Tínhamos muita pena de Linco não jogar aquela última partida. Ele, com
tanta espera e vontade, planejara a grande vitória. Um ou outro de nós se
arriscava, em meia voz, para o maior silêncio dos pares:
– E o jogo de amanhã?
Primeiro concordamos
com a idéia de que não haveria o jogo. Os caras do Malhado tinham de
compreender o respeito devido a Linco, o motivo de força maior. Aliás, que jogo
teria graça para nós, naquelas circunstâncias? Estava, então, acertado. Passava
da meia-noite, de qual a qual íamos tombando de sono. Cada um procurou seu
caminho de casa.
No domingo, pela
manhã, nos reuníamos em frente à casa de Linco. Vinha então a embaixada do
Malhado em nossa petição, naquele uniforme grená desbotado de sempre. Cadê nosso
time? Era hora do jogo. Logo explicamos o fato, eles se concentraram no
silêncio, com algumas perguntas esparsas. Depois entraram para ver o nosso
amigo, já composto entre flores, perfilaram-se com respeito e tristeza. Não
havia ânimo para a partida, com tal desfalque em nosso coração.
Todos de volta ao
terreiro, daí batíamos uma bola solidária, numa roda de pé em pé, comungávamos
a dor daquela tragédia. Num momento em que a bola resvalou da roda, fugindo de
controle, veio dos amigos do Malhado uma proposta:
– Vamos jogar a
partida – um deles se aventurou, meio que experimentando.
– Não dá – cada um de
nós respondia, em consequência perfeita.
Eles insistiam que
jogássemos em homenagem a Linco. Haveria um minuto de silêncio. Eles queriam o
jogo, mas não lhes víamos nenhum sinal de revanche. Era razoável, de olhar em
olhar nos entendemos: a gente jogava. Mas, com uma condição: seria a partida de
um só gol. Quem marcasse primeiro ganhava o torneio, com respeito, sem festa
nem gozação. Este jogo de futebol não podia demorar, pois sabíamos que, logo
mais, Linco seria levado para outro campo. E todos o acompanharíamos em sua
última partida.
– É o nosso último
jogo. Sem Linco, o nosso time acaba – alguém murmurou e todos acenaram que sim.
Vestimos o uniforme do
time, em azul e branco, para o jogo final. A camisa de Linco ficou estendida no
chão, próxima ao campo, invocando a sua presença. O juiz, que vinha do bairro
Pontal, depositou o troféu sobre a camisa dele. E nos convocou ao meio do
gramado. Depois do minuto de silêncio, que varou mais que sessenta segundos,
demos a saída de bola e nos pusemos em disputa.
Era um jogo estranho,
sem o mínimo ânimo de ambas as partes. O pessoal do Malhado nos dominava, mas
chutava sem força, parecia que sem querer marcar o gol. Dava vontade de parar a
partida, lagar aquilo de mão, ir velar os últimos momentos de Linco. Após
longos minutos modorrentos, os nossos oponentes improvisavam de novo:
– Vamos disputar pra
valer, gente!
Outro de lá lançou um
ajuste: o troféu ganhasse o nome de Taça Linco. E o tento da vitória seria o
“Gol Linco de Ouro”. De pronto concordamos, isto trazia um novo significado,
valia a homenagem de nosso esforço. Abraçados em campo, reafirmamos a senha da
vitória que o próprio ausente nos ensinara. Em seu nome, nos renovávamos com a
vontade de vencer.
A partida reiniciou-se
com outro espírito. O Malhado mostrava-se bem melhor, correto e persistente, em
busca do gol. Para nós, restava resistir e lutar por honra, pois agora
sentíamos Linco entre nós, suas palavras de incentivo e ensino nos alcançavam,
minando de nossa memória.
Mas o empate persistia
em zero a zero, quase à hora de Linco partir. Eu me senti tocado pelo desejo de
oferecer aquela taça ao amigo, antes que a luz do mundo lhe fosse apagada para
sempre. Então, deixei minha posição de defesa, me postei no lugar em que ele
ficava, no todo que arisco, ao largo dos lances do jogo. A bola haveria de me
procurar ali, com saudades do seu preferido. E enquanto aguardava o momento, eu
imaginava um lance, um jeito dos que Linco sabia.
Os companheiros
pareciam entender a tática, pois embarcaram num modo manhoso de chutar a bola,
sempre que conseguiam, com muito esforço, tomá-la dos craques do Malhado. Do
meio de campo, eu via o terreiro da casa, o povo já ia se aglomerando para o
enterro. Os outros meninos, tão entretidos, não perceberam logo. Eu, sim, pois
alheava-me da disputa e fiscalizava o movimento das pessoas minuto a minuto.
Era urgente encerrar o jogo, que Linco estava de partida. Baixou em mim uma
agonia, era uma tristeza, deu-me um aperto no peito, as lágrimas suadas me
queimavam os olhos. Gritei, dentro de mim mesmo:
– Linco, não pode ser!
Levante daí, venha jogar com a gente!
Corri até a defesa,
pedi a bola ao nosso goleiro. Levantei a cabeça com ímpeto e irrompi contra o
time do Malhado. Eu sorria e chorava. Na minha mente desenhava-se um ziguezague:
driblei um adversário, dois, três quatro... Arremeti contra o goleiro deles, que
saía do gol fechando o ângulo. Parei, como só Linco parava, dei um toque sutil
e saí de lado. O gol estava diante de mim, solidário e desamparado. Houve ali
uma expectativa, o jogo já terminava. E eu lhe ofertei a bola: “Linco, faça o
seu gol!” Então eu mesmo rolei, bem de levinho: e a bola foi chorar no fundo da
rede.
*
Aleilton Fonseca é escritor, Doutor em Letras (USP), professor titular pleno da
Universidade Estadual de Feira de Santana, membro da Academia de Letras da
Bahia, da UBE-SP e do PEN Clube do Brasil.
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