A vírgula e o anacoluto
* Por Fausto Brignol
A fuga à realidade e a construção de outra realidade que mais convenha e se adapte aos cérebros minimalistas daqueles que querem fazer do significado e do significante e do próprio signo que redundará dessas duas premissas o verbo ou caos que no princípio era, e ao ser torna-se em deus de todos os morfemas ou deus morfético, acasulado em suas deduções metafísicas e por isto adormecido, drogado, extasiado em sua própria divindade, que somente poderá ser vislumbrada pelos iniciados na Palavra, que será dissecada em palavras outras para que os profanos ignaros não possam jamais entender o sagrado espairecer do gozo do saber, da perfeição da estética que não mais se autoflagela com as minudências do cotidiano e se torna em ética própria, reservada, acima do bem e do mal, posto que maniqueísmo é coisa para o povo que deve, sozinho, arrostar com a culpa de ser povo, uma culpa original sem desejo ou volúpia ou vir-a-ser que a justifique; apenas culpa sem metodologias, sem espaço para dissertações, sem percepção maior que os cinco condenados sentidos a que tem direito de usar de maneira assaz grotesca, pois lhe escapa o sentido dos sentidos e só lhe resta o viver destinado que todas as igrejas e grupos sociais estreitos em seus verbos pessoais o faz perceber como necessidade e, mais que isso, urgência, pois a vida ruge e é cruel para os que não entendem nada do verbo ou do ser ou de construções gramaticais ou das diversas veredas do pensamento humano; que não é nem dadaísta nem pós-moderno, nem mesmo moderno – em sua única escola de somente povo - e seu impressionismo limita-se – tão limitado é! – apenas às impressões diárias que lhe causam estupor e raiva e soluços e outras expressões que não estão previstas pela estética formal ou pelo café filosófico dos desocupados, e que dele exploram toda a sua filosofia, apolínea e negligente, e dele esperam mais que o pão que lhe negam, mais que a filosofia que lhe escondem, mas o bem viver que lhe é roubado em cada gota de suor, realmente gota e realmente suor, mas sempre transformado em arte abstrata ou fugazes composições artísticas, ou instalações célebres por sua mediocridade e fuga, porque a vida não é urgente nem demasiada para os que não tem os ombros curvos ou para os donos das palavras e da cultura, que perseveram em distinguir-se do apenas povo, dando-lhe apenas um eventual prazer dionisíaco, embora controlado, para que não pense no seu nada e não se insurja e deixe de ser a frase quebrada mas necessária, um erro de construção, um anacoluto, sem força ou continuidade, sem energia para unir-se em rebelião.
A arte, que no seu início era insurgência, rebelião, revolução, quebra das vidraças empoeiradas da cultura morta, à medida em que é aceita e digerida e devidamente explicada em seu aspecto formal e estético, que lhe rouba o sangue revolucionário e a torna muda e pronta para ser absorvida pelos donos da cultura, que a querem estática, melindrosa e pragmática em um fazer artístico apenas voltado para o ganho e interessado nas reverências e bajulações daqueles que a compram e veneram como sarcófago onde o segredo é resguardado de todos os não iniciados, como mero produto de pseudo-deuses da criação, que perdem o dom de criar e se tornam repetitivos mercenários prontos ao suicídio bem pago... Anacoluta arte a que não tem acesso o povo, que só conhece a arte de tentar sobreviver, ou viver como vírgula da imensa frase orgiástica dos donos da sua vida, sufocando na encruzilhada das orações e na prescrição de uma sintaxe forjada para o seu sufocar, que o impede de também criar, ou tentar um caminho diferente formado por força e vontade e talvez... Mas proibido, porque a vírgula não pode sobrepor-se ao verbo e o sonho não pode ir além do sono que o delimita.
Supondo-se que morra uma vírgula e se torne descartável e esquecida no universo de idênticas, mas necessárias vírgulas; quase inexistente traço mínimo entre asfixiantes palavras que a relevam a apenas vírgula, e, ao morrer, após leitura ébria e febril e inconstante e delirante, ou simplesmente casmurro e quieto estudo aborrecido, mas sempre distante, onde a sua vida nada mais era que um não-ser operário, sem criatividade ou força ou determinação ou vontade própria para ousar ir além do seu estado de estéril conexão entre palavras, que se tornam altivas e prepotentes e arrogantes em relação à solitária vírgula, mesmo entre vírgulas, com as classes possuidoras do saber hermético e do conhecimento hierático nelas impresso, enquanto palavras que revelam ou escondem ou apenas insinuam o seu superior poder verbal que despreza o insignificante retorcido signo, que não é signo nem significado ou significante, mas vírgula esquecida, impotente, escrava e agora morta – quem chorará por ela, ou lhe fará uma oração absoluta, em período simples?
• Poeta, jornalista e escritor
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