Sabotagem
* Por Marcelo Sguassábia
ILUSTRAÇÃO: THIAGO CAYRES
Eu trabalho enrolando cubanos. Não, não é falsificando vistos e passaportes para moradores da Ilha que, disfarçados de gringos fazendo turismo, queiram fugir para lugar melhor. É na manufatura de charutos, mesmo. Enrolando largas e secas folhas de fumo, sempre no mesmo sentido sobre uma pedra de mármore, com a mesma apurada destreza para que saiam perfeitos, das 8 às 22, há 34 anos.
Puros, hechos a mano. Amo o que faço. Fabrico a morte dos que podem mais, e isso me excita e me vinga. Pagam dezenas de dólares por um únicoCastrovilla, que eu de caso pensado manipulo com as mãos besuntadas de fezes e catarro, sem que o inspetor de qualidade perceba. Fezes e catarro que dão liga às folhas que fazem este fálico objeto de desejo. Entre um gole e outro de licores finos, os poderosos enchem suas bocas bem cuidadas com meus excrementos. Antes que morram hão de saber da verdade, e tentarão com seu dinheiro extirpar seus pulmões e implantar outros novos, rosadinhos, sem a merda e sem o catarro que tantas vezes inalaram.
O que há de mais imundo em mim viciando o ar das reuniões sigilosas e dos conchavos secretos. Meus dejetos sacramentando o jantar dos deuses - nos transatlânticos, nos cassinos, onde houver luxo e cobiça. Que mais um pobre nativo, sem berço e sem dinheiro para o caixão, poderia querer da vida?
* Redator publicitário há quase 30 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
Fez-me lembrar de um personagem do livro a porteira do mundo, cujo autor é o saudoso Hermilo Borba: "(... Eu estava no fim da escala, juntamente com Anastácio, o negro, o outro contínuo, já com dez anos de serviços, fatalista, quase nunca pronunciado uma palavra, jamais uma frase, a não ser 'Sim senhor', andando devagar para ganhar tempo, nos olhos o ódio concentrado. Descobri, depois, que ele cuspia nas xícaras de café e nos copos de refrescos que servia ao pessoal mais graduado. Adotei sua forma de vingança e me senti melhor..."
ResponderExcluirUma pergunta que não quer calar: O texto acima o personagem é fictício ou não?
Abraços
Vingança maligna! É possível isso? Ainda assim, acredito que serviçais, de outros lugares - sem paranóia, por favor -, também se vingam dos seus patrões, cuspindo na comida. Que jornada de trabalho, meu irmão! Catorze horas por dia, durante 34 anos. Quantos charutos fabricados?
ResponderExcluirOi, José. Grato pela leitura e pelo comentário.
ResponderExcluirO personagem é fictício, sim. Mas não sei até que ponto...
Obrigado a você também, Mara, pelos frequentes comments neste nosso espaço. Abraços a ambos.