O menino do menino
* Por Urda Alice Klueger
Primeiro foi um menino, o primeiro da nossa gente a nascer fora do continente americano em mais de século, pequenino pintassilgo para quem, logo nos primeiros meses, mandei uma camisa do Fluminense. Tenho uma foto dele, bebê ainda, sentado sobre um carro azul claro, usando aquela camisa e espiando o grande mundo-de-meu-Deus com os olhos semicerrados, curiosíssimo com aquele acontecimento de estar vivo. Tinha então o nome de Ulemo Mtekateka, já que lá no país onde nascera, o Malawi, era necessário ter-se um nome nacional. Aquele nome surgira como homenagem a um bondoso farmacêutico que fora amigo da sua família e tinha um significado dignificante: queria dizer “Respeito para um homem livre”.
Ficou conhecido como Mteka, embora, quando veio ao Brasil, um pouco mais tarde, tenha sido registrado aqui como Luiz Fernando. Nunca ninguém soube quem era Luiz Fernando – Mteka ficou Mteka para sempre, e agora, na vida adulta, ele assina seus correios eletrônicos como Ulemo.
Mteka foi o primeiro africano da nossa família. Tendo em vista que as pessoas estão acostumadas a pensar que todos os africanos são negros, assim como lá na Europa pensam que todos os brasileiros também o são – no tempo que passei em Paris, me diziam: “Brésilienne? C´est pas posible! Brésiliennes sont brune et vous êtes blonde!” [1] - como podem ver, as pessoas às vezes pensam coisas muito estranhas umas das outras – até tem gente que pensa que todo muçulmano é terrorista e que nos Estados Unidos todos são ricos e felizes - então, só por causa de tais confusões, explico que Mteka é um africano loirinho, de olhos que cambiam entre o verde e o azul, e que no total dos seus 31 anos, só passou 5 no Brasil, lá nos tempos do jardim-de-infância e da escola primária, mas foi o bastante para que tivesse muito forte, dentro dele, este nosso país. Há que se ver as bandeiras brasileiras e a coleção de camisas de times de futebol brasileiros que ele tem!
Pois bem, Mteka cresceu, estudou, profissionalizou-se, namorou, casou com a Claudinha, doçura de moça africana de avós portugueses, que já esteve por aqui pelo Brasil passeando e encantou a todos nós. E que foi que Mteka e Claudinha fizeram? Nada mais nada menos do que o normal: fizeram um bebê, segunda geração da nossa família a nascer na África. Quando veio a notícia de que a visita da Cegonha já estava agendada, passamos a contar meses, semanas e dias nos dedos, e a sonhar com esse menininho que viria. Como seria seu nome? Estava bem definido: teria um nome de cá e um de lá, e o de cá seria Rafael, nome de anjo, ou de arcanjo, já não sei. E o de lá? Mteka conhece uma porção de línguas africanas, e levou meses escolhendo o nome mais bonito e mais significativo. Quando, afinal, a Internet me trouxe o primeiro sorriso obtido via ultra-som do menininho que viria, ele já tinha nome: seria Rafael Bomani. Bomani, Bomani, o que quer dizer? Na língua chichewa, a do Malawi, lá onde Mteka tinha nascido, lá de onde viera o nome do pai, vinha agora o nome do filho: Bomani queria dizer “Guerreiro”. Rafael Bomani, quer dizer, Anjo (ou Arcanjo?) Guerreiro, nem mais nem menos.
E então, no devido tempo, neste ano de 2006, Rafael Bomani Machado Ferreira nasceu, e, incrível! era igualzinho ao menininho que a gente tinha vislumbrado e conhecido via ultra-som! Então começaram a chegar as fotos, tão lindas, tantas delas, com papai, com mamãe, com vovó, com vovô, com a roupinha da Seleção Brasileira que lhe mandei antes que nascesse, com seu narizinho que é igual ao da Bisavó Minervina, e cada foto é uma festa! Mas há uma, ah! céus, há uma que é de arrasar o coração de quem tenha alguma sensibilidade: o menino olha pela primeira vez para o menino! É foto tirada ainda na sala de parto, no primeiro momento em que Mteka olha pela primeira vez para o Rafael Bomani todo embrulhadinho, acabado de receber de decerto alguma enfermeira, logo depois do seu primeiro choro de vida! Caso ainda não tivesse acontecido, é muito evidente que bem naquele momento estabeleceu-se uma fortíssima relação entre aqueles dois! Os olhos do Mteka contam tudo, dizem de toda a emoção daquele momento. E como não dá para ficar indiferente diante daquela foto, eu logo viajei no tempo: para mim, ainda era o menininho de camisa do Fluminense sentado sobre um carro azul-claro, e já ali, com ele, o outro menininho que viera como que um presente do Destino! Emocionada, chorei. Aquele era o meu menino, e agora já havia o menino do menino!
Bem-vindo, Rafael Bomani!
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
A vida e sua renovação a cada nascimento é uma benção. Mais ainda, quando esse milagre se dá do outro lado do Atlântico.
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