sábado, 2 de abril de 2011



O Jardineiro no Canteiro das Palavras


* Por Deonísio da Silva


Quero ter com a língua portuguesa uma relação amorosa, cheia de toda ternura, de toques delicados, sem nenhuma agressão, de respeito mútuo e tratos justos. Se uma palavra não quiser entrar em minha frase, depois de algum olhar, convite ou sedução, não faz mal: vou namorar outra, até encontrar aquela que me foi destinada. E sei que foram muitas. E se ainda assim eu não encontrar quem me queira, inventarei a palavra apropriada. Foi assim que todas nasceram.

O texto não é o meu harém. As odaliscas que aqui dançam e cantam são ubíquas e podem dançar e cantar onde bem quiserem, pois são livres como eu. Quero viver na deliciosa companhia das efêmeras. Nenhuma delas precisa me amar eternamente. Quero apenas o amor fugaz, o brilho rápido, sua carinhosa atenção por poucos momentos: a vida é breve.

Não vou aprender as gramáticas dos séculos passados. Não me interessa. Não estou vivendo nele. O passado é como um cemitério: só há mortos e tristezas por lá. Flores, somente uma vez por ano. Sei que algumas arqueologias e estudos são importantes para o conhecimento. Mas eu sou jardineiro das palavras, não botânico.

Em vez dos cemitérios da língua, procuro as creches. Quero a língua balbuciada no berço, entre os choros da boca, o leite dos seios, a canção nos ouvidos e o caminho das mãos. A algazarra das creches me fascina tanto quanto os sussurros dos amantes ou o cochicho dos fofoqueiros, esses seres altruístas, tão modestos e solidários, a ponto de só se preocuparem com a vida dos outros, esquecendo-se das suas, segundo conceito delicioso do poeta Mário Quintana.

As canções populares me deixam todo arrepiado. Estou interessado no que todos têm para me contar: de novos ou velhos, todas as conversas me despertam para outros mundos, muitos dos quais eu nem sabia que existiam.

Abro os livros. Cheiro suas páginas. Suas palavras e eu tramamos uma sedução mútua e logo vamos para a cama. Lá é melhor de ler do que nos bancos escolares.

Se vou escrever, miro-me nos espelhos dos que me antecederam, sobretudo os clássicos. Mas quero ler também os escritores de hoje, que cantam, mugem ou gemem no seu tempo, que é também o meu.

Se me sobrar tempo, estudarei gramática, irei a Portugal. Tempo é o que não me falta, pois o prazer dispensa o tormento da pressa.

Parem a escola que eu quero descer. Não agüento mais tanta necrofilia, arqueologia e gramática. Castro Alves morreu de gangrena no pé. Cruz e Sousa foi conduzido doente num vagão de gado: ninguém o acompanhou ao sanatório. Machado de Assis, filho de uma lavadeira, nasceu num morro e era preto, pobre, órfão, epilético, gago, feio, casou com uma solteirona que tinha comido a merenda antes do recreio e não teve filhos.

Adianta saber tudo isso quando não se lê o homem? Poesias, contos e romances que todos eles escreveram, morrem abandonados todos os dias nas escolas. São poucos os que acendem uma vela para a memória de Castro Alves sobre os escravos e as paixões, de Cruz e Souza sobre as dores e os abraços, de Machado sobre amizades e traições. Poucos são os que guardam na lembrança uma boa frase ou um verso genial de qualquer dos escritores estudados. Entretanto, financiado pelo CNPQ ou pelo que eu-não-sei-pra-quê, todo ano um mestre bobo descobre qual deles tinha caspa, tuberculose ou unha encravada.

Eu amo línguas e literaturas, principalmente as que me são mais próximas, como a brasileira e a portuguesa, por razões semelhantes àquelas que me levam ao amor filial. Por isso, jamais as maltrato ou desprezo, fazendo de conta que não existem. Não domino a língua portuguesa: mantenho com ela uma relação de parceria. Não permito que, por ignorância minha, ela me leve a dizer o que não quero ou a não poder dizer o que quero. Do contrário, de que me servirá a liberdade de expressão?

Em língua portuguesa, expresso o que bem me apraz, olhando com atenção para ver se é canela ou sassafrás. Aos dicionários, empresários das palavras, com aquele enxame de vocábulos, dou uma atenção semelhante ao livreiro que me vende romances. Estou interessado no mel das abelhas, não em suas ferroadas ou no dono da colmeia.

Para ler por gosto, não é preciso dicionário. Não nos aborreçam com aleivosias, olhares à sorrelfa e outras vericúndias, procurando anástrofes e zeugmas, onde existem apenas metáforas. Discrepo sempre que alguém tenta o domínio pelo verbo, que é insuficiente para dizer as coisas, desde o princípio do mundo.

A língua é necessária, talvez seja a nossa melhor metade, mas não é absoluta. Se o fosse, os namorados não se beijariam, os sentimentos estariam sempre arrumados e não haveria literatura.

Obs.: Esta crônica foi escrita especialmente para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, por solicitação de Augusto Nunes, então seu diretor de redação. Repercutia crônica de Luís Fernando Veríssimo, intitulada O gigolô das palavras, que deu título também a um livro da professora Maria da Glória Bordini. Versões resumidas saíram também na revista Época e no Jornal do Brasil.


* Escritor, Doutor em Letras pela USP, autor de 30 livros, alguns transpostos para teatro e TV. Assina colunas semanais no Jornal do Brasil, na Caras e no Observatório da Imprensa. Dirige o Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, no Rio.

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