

Os gritos da noite
* Por Paulo Valença
1
Tereza se põe à janela, tentando se conter, para não “explodir” e ter consequências imprevisíveis... Às costas, o leito com o enfermo, de pernas sem movimentos, mais magro, amarelado, envelhecido, cochilando para de repente despertar assustado e com o olhar perdido buscar uma solução que acabe o barulho que vem de fora, do bar no térreo, do som alto saído da traseira do carro. Desperto, move os braços compridos, de mãos com dedos longos, unhas sujas, impaciente. Tereza mesmo sem se voltar, entende a cena repetida quantas vezes?
- Isso é um inferno!
Ela protesta em voz alta. Por que os vizinhos não reclamam contra esse egoísmo do curtir a música sem se importar com o sossego alheio? Ela mesma, Tereza, já ligou para a autoridade protestando e até agora nada da visita dos fiscais a fim de solucionar o problema, pôr um fim a essa zoada infernal...
A noite adianta-se. Um carro estaciona ao meio-fio defronte. O casal salta, e sorrindo encaminha-se ao bar. O movimento vai crescendo. E novas músicas “bregas” sobem, chegam até aqui, no primeiro andar para...
- Tereza.
A voz do marido, chamando-a no apelo angustiante da impaciência que o domina.
- Tou indo, Aluísio.
Retrocede ao leito:
- Sim?
- Tereza por que você não faz queixa dessa barulheira?
Sem fitar o rosto acabado pela doença, ela tenta acalmá-lo:
- Já reclamei.
- E por que não acabam com esse abuso?
- Aluísio você sabe como as coisas funcionam nesta cidade...
Silenciam, entregues à realidade que lhes afeta, vencendo-os.
As lágrimas descem dos olhos de Aluísio e Tereza foge o rosto de lado, buscando esconder as próprias lágrimas.
2
- Macaxeira quem é que mora aí em cima? – indaga o rapaz moreno-fechado, magro, feioso ao companheiro de mesa, que bebendo a cerveja e pondo o copo sobre a mesa, responde, sem o fitar, seguindo com os olhos da luxúria a moça que acompanha o sujeito baixo, gordo, “coroa”, após saltarem do carro:
- Dizem que é um casal ainda jovem. O cara é paralítico das pernas e a mulher é vendedora de perfumes e roupas íntimas.
- Sei.
O moreno toma a cerveja devagarzinho. Pensativo. A pessoa doente e ter de suportar um som alto desse, sem poder reagir...
- É bronca!
O outro se volta, perplexo:
- Falou Pretinho?
- Nada não.
O casal chega e ocupa a mesa à esquerda, próxima. A moça sorri, agitando os cabelos longos às costas, num gesto feminino, gracioso e o homem que a acompanha acena ao despachante e proprietário do bar, o Geovani, chamando-o.
Macaxeira e Pretinho seguem a cena e com disfarce analisam a jovem morena, esguia, tipo manequim, sorridente.
Outro automóvel pára atrás daquele já estacionado.
Três rapazes saltam e encaminham-se para aqui. Pela traseira aberta do veículo próximo, o som sai, ganhando o espaço, subindo, enchendo a noite da música “brega “, sucesso do momento.
À janela, a mulher observa o movimento embaixo, na repetição da cena da própria angústia, incapacidade de vencer a cruel realidade.
- Tereza?
- Tou indo.
Os passos se avizinham. O rosto suado, de olhos aflitos espera. E a mão se estende afagando-lhe os cabelos ondulados, grandes, negros.
- Amanhã, irei pessoalmente protestar contra esse abuso infernal!
- Vá Tereza. Vá.
3
Luzinete é jovem, morena, esguia, bem-feita e assim de short verde e blusa branca... Desperta a atenção, principalmente dos homens.
- Vê que menina Macaxeira!
Este se volta, buscando enxergar quem está se aproximando.
- Falou Pretinho. Ela é mesmo uma “gata!”.
Luzinete chega e encaminha-se ao balcão por trás das mesas ocupadas por os freqüentadores das sextas-feiras e debruçando-se no balcão, fala à ajudante do Geovani, o proprietário do estabelecimento.
- Ela leva jeito de “garota de esquema,” Macaxeira.
- Concordo.
Então a idéia de repente lhe chega:
- Ô Pretinho vamos ver se ela topa sair com a gente?
O amigo sorri malicioso, entendendo-o.
- Vamos!
Agora, Geovani conversa com a moça que sorri, fazendo covinhas no rosto de traços perfeitos.
À mesa os dois rapazes fascinados com a imagem da morena têm em suas mentes doentias, a luxúria do apelo da carne.
A mesa com a cadeira vazia. Os rostos sorridentes. O convite que a mão do sujeito moreno lhe faz...
- Com licença.
- Tem toda.
Então afastando a cadeira para trás, ela se senta. Sorrindo. Os olhares de Macaxeira e Pretinho se cruzam, no entendimento de que o que planejaram se realizará.
- Aceita um copo de cerveja?
Luzinete fita o rosto pálido de Macaxeira e sacudindo os cabelos para trás, em gesto feminino, aquiesce:
- Aceito.
Do automóvel próximo o som chega mais alto, poderoso. Dono da madrugada.
À janela do primeiro andar, a presença angustiada e silenciosa da mulher se destaca.
Sem tardar, Macaxeira e Pretinho após pagar a despesa se despedem:
- Tchau Geovani.
O rosto largo sorri e o braço musculoso se ergue e a mão acena, em gesto de adeus.
- Tchau!
Os rapazes e Luzinete então entrando no carro estacionado ao meio-fio da calçada oposta, partem em velocidade.
Geovani é experiente, conhece bem a vida, entende as coisas e nessa profissão de dono de bar, com as criaturas que se revelam após a bebida... Sim, aqueles três vão “curtir” um programa num desses motéis aqui perto... Uma mocinha tão bonita e já entregue à prostituição... Lamentável! Mas, assim é a vida, os tempos atuais. A evolução.
Senta-se na cadeira vizinha e fecha os olhos, cansado. A noite toda servindo mesas, puxando as pernas raquíticas, apoiando-se na bengala, mesmo contando com a ajuda da Rita, a garçonete...
- É dose pra elefante!
Suspira baixinho e permanece de olhos cerrados, enquanto Rita corre a flanela sobre o balcão, limpando-o, pondo as coisas nos lugares. Apressa-se, pois o filho pequeno espera-a para ir para a creche.
4
Agora que os carros e os fregueses das sextas partiram, que o som também se foi, com o respectivo carro cinza...
- Rita?
- Diga seu Geovani.
- Me traga uma água mineral.
- Certo.
À janela do primeiro andar, a mulher surge, como testemunha do novo dia que desponta. Novo dia, contudo, na próxima sexta-feira...
- Tereza.
- Tou indo, Aluísio.
Devagar, pensativa, ela se avizinha do leito, com o enfermo mais magro, amarelo e envelhecido.
- Sim?
Indaga e foge o rosto de lado, na covardia de mais uma vez não presenciar a dor exposta da miséria humana.
- Me vire de lado, Tereza. Tou com as costas que não agüento!
- Sim, Aluísio.
Responde e, atendendo-o, se reentrega à realidade, dura realidade.
* Paulo Valença é autor paraibano, com livros de ficção premiados nacionalmente; Verbete do Dicionário Biobibliográfico de Escritores Contemporâneos; Verbete da Enciclopédia de Literatura Contemporânea; Membro de várias instituições literárias; Presente em diversos sites; Reside em Recife/PE.
* Por Paulo Valença
1
Tereza se põe à janela, tentando se conter, para não “explodir” e ter consequências imprevisíveis... Às costas, o leito com o enfermo, de pernas sem movimentos, mais magro, amarelado, envelhecido, cochilando para de repente despertar assustado e com o olhar perdido buscar uma solução que acabe o barulho que vem de fora, do bar no térreo, do som alto saído da traseira do carro. Desperto, move os braços compridos, de mãos com dedos longos, unhas sujas, impaciente. Tereza mesmo sem se voltar, entende a cena repetida quantas vezes?
- Isso é um inferno!
Ela protesta em voz alta. Por que os vizinhos não reclamam contra esse egoísmo do curtir a música sem se importar com o sossego alheio? Ela mesma, Tereza, já ligou para a autoridade protestando e até agora nada da visita dos fiscais a fim de solucionar o problema, pôr um fim a essa zoada infernal...
A noite adianta-se. Um carro estaciona ao meio-fio defronte. O casal salta, e sorrindo encaminha-se ao bar. O movimento vai crescendo. E novas músicas “bregas” sobem, chegam até aqui, no primeiro andar para...
- Tereza.
A voz do marido, chamando-a no apelo angustiante da impaciência que o domina.
- Tou indo, Aluísio.
Retrocede ao leito:
- Sim?
- Tereza por que você não faz queixa dessa barulheira?
Sem fitar o rosto acabado pela doença, ela tenta acalmá-lo:
- Já reclamei.
- E por que não acabam com esse abuso?
- Aluísio você sabe como as coisas funcionam nesta cidade...
Silenciam, entregues à realidade que lhes afeta, vencendo-os.
As lágrimas descem dos olhos de Aluísio e Tereza foge o rosto de lado, buscando esconder as próprias lágrimas.
2
- Macaxeira quem é que mora aí em cima? – indaga o rapaz moreno-fechado, magro, feioso ao companheiro de mesa, que bebendo a cerveja e pondo o copo sobre a mesa, responde, sem o fitar, seguindo com os olhos da luxúria a moça que acompanha o sujeito baixo, gordo, “coroa”, após saltarem do carro:
- Dizem que é um casal ainda jovem. O cara é paralítico das pernas e a mulher é vendedora de perfumes e roupas íntimas.
- Sei.
O moreno toma a cerveja devagarzinho. Pensativo. A pessoa doente e ter de suportar um som alto desse, sem poder reagir...
- É bronca!
O outro se volta, perplexo:
- Falou Pretinho?
- Nada não.
O casal chega e ocupa a mesa à esquerda, próxima. A moça sorri, agitando os cabelos longos às costas, num gesto feminino, gracioso e o homem que a acompanha acena ao despachante e proprietário do bar, o Geovani, chamando-o.
Macaxeira e Pretinho seguem a cena e com disfarce analisam a jovem morena, esguia, tipo manequim, sorridente.
Outro automóvel pára atrás daquele já estacionado.
Três rapazes saltam e encaminham-se para aqui. Pela traseira aberta do veículo próximo, o som sai, ganhando o espaço, subindo, enchendo a noite da música “brega “, sucesso do momento.
À janela, a mulher observa o movimento embaixo, na repetição da cena da própria angústia, incapacidade de vencer a cruel realidade.
- Tereza?
- Tou indo.
Os passos se avizinham. O rosto suado, de olhos aflitos espera. E a mão se estende afagando-lhe os cabelos ondulados, grandes, negros.
- Amanhã, irei pessoalmente protestar contra esse abuso infernal!
- Vá Tereza. Vá.
3
Luzinete é jovem, morena, esguia, bem-feita e assim de short verde e blusa branca... Desperta a atenção, principalmente dos homens.
- Vê que menina Macaxeira!
Este se volta, buscando enxergar quem está se aproximando.
- Falou Pretinho. Ela é mesmo uma “gata!”.
Luzinete chega e encaminha-se ao balcão por trás das mesas ocupadas por os freqüentadores das sextas-feiras e debruçando-se no balcão, fala à ajudante do Geovani, o proprietário do estabelecimento.
- Ela leva jeito de “garota de esquema,” Macaxeira.
- Concordo.
Então a idéia de repente lhe chega:
- Ô Pretinho vamos ver se ela topa sair com a gente?
O amigo sorri malicioso, entendendo-o.
- Vamos!
Agora, Geovani conversa com a moça que sorri, fazendo covinhas no rosto de traços perfeitos.
À mesa os dois rapazes fascinados com a imagem da morena têm em suas mentes doentias, a luxúria do apelo da carne.
A mesa com a cadeira vazia. Os rostos sorridentes. O convite que a mão do sujeito moreno lhe faz...
- Com licença.
- Tem toda.
Então afastando a cadeira para trás, ela se senta. Sorrindo. Os olhares de Macaxeira e Pretinho se cruzam, no entendimento de que o que planejaram se realizará.
- Aceita um copo de cerveja?
Luzinete fita o rosto pálido de Macaxeira e sacudindo os cabelos para trás, em gesto feminino, aquiesce:
- Aceito.
Do automóvel próximo o som chega mais alto, poderoso. Dono da madrugada.
À janela do primeiro andar, a presença angustiada e silenciosa da mulher se destaca.
Sem tardar, Macaxeira e Pretinho após pagar a despesa se despedem:
- Tchau Geovani.
O rosto largo sorri e o braço musculoso se ergue e a mão acena, em gesto de adeus.
- Tchau!
Os rapazes e Luzinete então entrando no carro estacionado ao meio-fio da calçada oposta, partem em velocidade.
Geovani é experiente, conhece bem a vida, entende as coisas e nessa profissão de dono de bar, com as criaturas que se revelam após a bebida... Sim, aqueles três vão “curtir” um programa num desses motéis aqui perto... Uma mocinha tão bonita e já entregue à prostituição... Lamentável! Mas, assim é a vida, os tempos atuais. A evolução.
Senta-se na cadeira vizinha e fecha os olhos, cansado. A noite toda servindo mesas, puxando as pernas raquíticas, apoiando-se na bengala, mesmo contando com a ajuda da Rita, a garçonete...
- É dose pra elefante!
Suspira baixinho e permanece de olhos cerrados, enquanto Rita corre a flanela sobre o balcão, limpando-o, pondo as coisas nos lugares. Apressa-se, pois o filho pequeno espera-a para ir para a creche.
4
Agora que os carros e os fregueses das sextas partiram, que o som também se foi, com o respectivo carro cinza...
- Rita?
- Diga seu Geovani.
- Me traga uma água mineral.
- Certo.
À janela do primeiro andar, a mulher surge, como testemunha do novo dia que desponta. Novo dia, contudo, na próxima sexta-feira...
- Tereza.
- Tou indo, Aluísio.
Devagar, pensativa, ela se avizinha do leito, com o enfermo mais magro, amarelo e envelhecido.
- Sim?
Indaga e foge o rosto de lado, na covardia de mais uma vez não presenciar a dor exposta da miséria humana.
- Me vire de lado, Tereza. Tou com as costas que não agüento!
- Sim, Aluísio.
Responde e, atendendo-o, se reentrega à realidade, dura realidade.
* Paulo Valença é autor paraibano, com livros de ficção premiados nacionalmente; Verbete do Dicionário Biobibliográfico de Escritores Contemporâneos; Verbete da Enciclopédia de Literatura Contemporânea; Membro de várias instituições literárias; Presente em diversos sites; Reside em Recife/PE.
Cotidiano duro, sem maquiagem.
ResponderExcluirMas tão presente que às vezes
nos parece banal...mas não é.
Ótimo texto.
Abraços
O autor do título mostra que a poluição sonora é prejudicial ao ser humano. Os níveis de ruído em decibéis é o que mais colabora para a existência da poluição sonora. A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que um som deve ficar em até 50 decibéis para não causar prejuízos. O pior é que não vejo as autoridades(Polícia)utilizarem o decibelímetro!!!
ResponderExcluirGostei do texto.
Abração do,
Calvino
Paulo
ResponderExcluirVivi essa situação três anos, com meu pai doente, com mal de Alzheimer e tendo como vizinha uma discoteca.
Quanto pedia para diminuirem o volume, sorriam, pediam desculpas e dali a um pouco aumentavam mais ainda. Um horror! Discutir? pra quê? Perder meu tempo? Foi triste.
nubia,
ResponderExcluirSeus comentários incentivam-me a continuar escrevendo, portanto, mais uma vez repito: Obrigado!
Abraço carinhoso. Paulo.
Calvino,
ResponderExcluirVocê diz tudo nessa análise sobre o som alto, no tormento que nos causa o egoísmo de alguns em "curtir" a música geralmente de péssima qualidade!
Abraços. PaulO.
liriodoprado,
ResponderExcluirPois é, colega. Você sofreu na pele, ou melhor, na alma, o tormento do som alto, que não respeita nem mesmo quem esteve doente, no caso, o seu pai.
Infelizmente vivemos num páis de terceiro mundo, onde a lei não é cumprida!
Abraço carinhoso. Paulo.