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Passos da mesma cena
* Por Paulo Valença
1
- Nega, com esse seu marido, você não arranja emprego em casa nenhuma: quando pedirem referências... – diz a vizinha, D. Mariana, indiscreta, ferina e ela, Darcy, fita o rosto negro, magro, envelhecido e nada responde. Entende. A vizinha está certa, com o companheiro que tem...
- Você me desculpe a franqueza, Darcy. Bom... Deixe-me ir cuidar da vida. Tchau!
- Tchau – responde, a voz baixa, magoada, na humilhação de mais uma vez estar diante da realidade, sua realidade. Então, fecha a porta e desce a rua ladeirada, indo para o trabalho.
Adiante, a figura gorda, baixa, lembrando um animal cevado, de D. Mariana caminha. Mulherzinha antipática! Contudo, é sincera, mesmo sendo grosseira como é... Um dia deixará de ouvir as palavras cruéis, que bem revelam tudo? Ah, como saber, prever o amanhã?
Das residências às laterais da rua moradores saem também para trabalhar. Seres silenciosos, envelhecidos, mal-vestidos, em passos ligeiros.
A rua transversal, embaixo, aos poucos vai se enchendo com outros homens, mulheres e jovens, no círculo da agitação natural da nova manhã. E um ou outro carro e moto passam. No céu azul, o sol cintila, esquentando. Darcy se apressa, integrando-se à cena dos que se movimentam. Por onde andará o Josiel a esta hora? Há dois dias que não aparece. Deve estar metido em alguma “embrulhada”. Quando some assim... o homem está perdido: envolvido com droga, sem destino...
- Melhor nem pensar!
- Falou D. Darcy? – inquire a mocinha ao lado.
Ela sorri, desculpando-se:
- Nada não. Pensando em besteira.
A jovem também sorrindo:
- Cuidado. Conheci uma criatura que começou assim...
Gargalham, se entendendo e aumentam os passos.
2
- Darcy lave esse tanque com detergente. Está um horror!
- Sim, D. Consuelo.
A patroa se retira falando baixinho, no hábito bem seu de desabafo, enquanto a empregada despeja o líquido sobre o cimento e esfrega-o, lavando-o, atendendo-a. Um dia estará noutro emprego. Um dia...
- Darcy venha até aqui, por favor.
- Tou indo, D. Consuelo.
Então interrompe o que faz e vai atender à patroa, sempre exigente, que não a deixa sossegar um instante.
- Sim?
- Você arrume melhor esse armário. Ponha o faqueiro no lugar dele. Você só faz as coisas certas se eu estiver por perto. Vá, arrume!
Silenciosa, novamente atende. Passando D. Consuelo deixa a cozinha, enquanto Darcy se apressa em cumprir a nova tarefa.
- Darcy!
- Que mulherzinha... – desabafa, libertando a voz da angústia. E vai saber o que D. Consuelo quer agora.
À noite, exausta, despede-se da patroa:
- Até amanhã.
Sem desviar a atenção da TV, com a novela das seis, a patroa indaga:
- Deixou a mesa posta para o Dr. Ricardo?
- Sim, senhora.
- Tudo bem. Até amanhã. E vê se chega mais cedo.
- Foi o ônibus que atrasou com um “engarrafamento”...
- A conversinha é sempre a mesma... Vá, siga com Deus!
Devagar, em passos tímidos Darcy se retira da sala larga, bem-mobiliada e, logo, está na rua transversal. Precisa se apressar para não perder o ônibus... E, de repente, sente-se mais gorda, pesada. Sim, a barriga não tardará a crescer com a gravidez.
- Seja o que Deus quiser.
O coletivo estaciona e correndo, ela vai ao seu encontro, pois se o perder, somente daqui a uns 30 ou 40 minutos chegará o próximo.
Adentra, suando, trêmula.
- Graças a Deus consegui!
O motorista concentrado à direção então arranca em velocidade.
A lotação vence a avenida ainda livre de um provável “congestionamento”, tão comum a essa hora.
3
O barulho das motos. E a pancada violenta na porta, derrubando-a. Os dois encapuzados adentram e a voz grossa do que é mais alto e forte gritando:
- Cadê o escroto do seu marido, o Josiel?
Perplexa, sentada na cama, Darcy mal consegue falar, com a voz trêmula:
- Não sei, não sei não... Não sei onde tá...
- Ah, é assim? Não tá? Apois vou deixar o recado pra ele.
Então os disparos. Os passos retrocedendo, que cortam a salinha, ganham a rua e o som das motos partindo, velozes, quebrando o silêncio da madrugada.
O corpo caído sobre o leito, ensangüentado, contorce-se e aos poucos, se aquieta. Para sempre. No repouso final.
A janela da casa defronte se entreabre bem devagar e os olhos curiosos e cautelosos de D. Mariana perscrutando, encaram a outra residência de porta arriada e envolta em pesado silêncio.
- Aconteceu coisa...
Fecha a janela e sentando-se na cadeira de balanço próxima, cadenciando-se, se perde em pensamentos. Sim, entende a conhecida cena da linguagem do morro, no cumprimento da lei do tráfico de drogas.
Sem tardar, outras janelas e portas se abrem também na curiosidade de saber o que houve com a vizinha. Então, os moradores se aproximam. Cautelosos, presos ao sadismo de presenciar a cena conhecida de vezes anteriores.
Calados adentram na pequena residência, envolta no pesado silêncio da morte.
* Paulo Valença é autor paraibano, com livros de ficção premiados nacionalmente; Verbete do Dicionário Biobibliográfico de Escritores Contemporâneos; Verbete da Enciclopédia de Literatura Contemporânea; Membro de várias instituições literárias; Presente em diversos sites; Reside em Recife/PE.
* Por Paulo Valença
1
- Nega, com esse seu marido, você não arranja emprego em casa nenhuma: quando pedirem referências... – diz a vizinha, D. Mariana, indiscreta, ferina e ela, Darcy, fita o rosto negro, magro, envelhecido e nada responde. Entende. A vizinha está certa, com o companheiro que tem...
- Você me desculpe a franqueza, Darcy. Bom... Deixe-me ir cuidar da vida. Tchau!
- Tchau – responde, a voz baixa, magoada, na humilhação de mais uma vez estar diante da realidade, sua realidade. Então, fecha a porta e desce a rua ladeirada, indo para o trabalho.
Adiante, a figura gorda, baixa, lembrando um animal cevado, de D. Mariana caminha. Mulherzinha antipática! Contudo, é sincera, mesmo sendo grosseira como é... Um dia deixará de ouvir as palavras cruéis, que bem revelam tudo? Ah, como saber, prever o amanhã?
Das residências às laterais da rua moradores saem também para trabalhar. Seres silenciosos, envelhecidos, mal-vestidos, em passos ligeiros.
A rua transversal, embaixo, aos poucos vai se enchendo com outros homens, mulheres e jovens, no círculo da agitação natural da nova manhã. E um ou outro carro e moto passam. No céu azul, o sol cintila, esquentando. Darcy se apressa, integrando-se à cena dos que se movimentam. Por onde andará o Josiel a esta hora? Há dois dias que não aparece. Deve estar metido em alguma “embrulhada”. Quando some assim... o homem está perdido: envolvido com droga, sem destino...
- Melhor nem pensar!
- Falou D. Darcy? – inquire a mocinha ao lado.
Ela sorri, desculpando-se:
- Nada não. Pensando em besteira.
A jovem também sorrindo:
- Cuidado. Conheci uma criatura que começou assim...
Gargalham, se entendendo e aumentam os passos.
2
- Darcy lave esse tanque com detergente. Está um horror!
- Sim, D. Consuelo.
A patroa se retira falando baixinho, no hábito bem seu de desabafo, enquanto a empregada despeja o líquido sobre o cimento e esfrega-o, lavando-o, atendendo-a. Um dia estará noutro emprego. Um dia...
- Darcy venha até aqui, por favor.
- Tou indo, D. Consuelo.
Então interrompe o que faz e vai atender à patroa, sempre exigente, que não a deixa sossegar um instante.
- Sim?
- Você arrume melhor esse armário. Ponha o faqueiro no lugar dele. Você só faz as coisas certas se eu estiver por perto. Vá, arrume!
Silenciosa, novamente atende. Passando D. Consuelo deixa a cozinha, enquanto Darcy se apressa em cumprir a nova tarefa.
- Darcy!
- Que mulherzinha... – desabafa, libertando a voz da angústia. E vai saber o que D. Consuelo quer agora.
À noite, exausta, despede-se da patroa:
- Até amanhã.
Sem desviar a atenção da TV, com a novela das seis, a patroa indaga:
- Deixou a mesa posta para o Dr. Ricardo?
- Sim, senhora.
- Tudo bem. Até amanhã. E vê se chega mais cedo.
- Foi o ônibus que atrasou com um “engarrafamento”...
- A conversinha é sempre a mesma... Vá, siga com Deus!
Devagar, em passos tímidos Darcy se retira da sala larga, bem-mobiliada e, logo, está na rua transversal. Precisa se apressar para não perder o ônibus... E, de repente, sente-se mais gorda, pesada. Sim, a barriga não tardará a crescer com a gravidez.
- Seja o que Deus quiser.
O coletivo estaciona e correndo, ela vai ao seu encontro, pois se o perder, somente daqui a uns 30 ou 40 minutos chegará o próximo.
Adentra, suando, trêmula.
- Graças a Deus consegui!
O motorista concentrado à direção então arranca em velocidade.
A lotação vence a avenida ainda livre de um provável “congestionamento”, tão comum a essa hora.
3
O barulho das motos. E a pancada violenta na porta, derrubando-a. Os dois encapuzados adentram e a voz grossa do que é mais alto e forte gritando:
- Cadê o escroto do seu marido, o Josiel?
Perplexa, sentada na cama, Darcy mal consegue falar, com a voz trêmula:
- Não sei, não sei não... Não sei onde tá...
- Ah, é assim? Não tá? Apois vou deixar o recado pra ele.
Então os disparos. Os passos retrocedendo, que cortam a salinha, ganham a rua e o som das motos partindo, velozes, quebrando o silêncio da madrugada.
O corpo caído sobre o leito, ensangüentado, contorce-se e aos poucos, se aquieta. Para sempre. No repouso final.
A janela da casa defronte se entreabre bem devagar e os olhos curiosos e cautelosos de D. Mariana perscrutando, encaram a outra residência de porta arriada e envolta em pesado silêncio.
- Aconteceu coisa...
Fecha a janela e sentando-se na cadeira de balanço próxima, cadenciando-se, se perde em pensamentos. Sim, entende a conhecida cena da linguagem do morro, no cumprimento da lei do tráfico de drogas.
Sem tardar, outras janelas e portas se abrem também na curiosidade de saber o que houve com a vizinha. Então, os moradores se aproximam. Cautelosos, presos ao sadismo de presenciar a cena conhecida de vezes anteriores.
Calados adentram na pequena residência, envolta no pesado silêncio da morte.
* Paulo Valença é autor paraibano, com livros de ficção premiados nacionalmente; Verbete do Dicionário Biobibliográfico de Escritores Contemporâneos; Verbete da Enciclopédia de Literatura Contemporânea; Membro de várias instituições literárias; Presente em diversos sites; Reside em Recife/PE.
E, assim sem preâmbulos, sonhos se
ResponderExcluirvão. Vida sem graça, ingrata.
Destinos cruéis que nem sequer te
dão a chance de dar um suspiro de
alívio.
Parabéns Paulo.
Abraços
nubia,
ResponderExcluirMais uma vez admiro-a por saber dizer tudo em poucas e inteligentes palavras, e também lhe agradeço o incentivo. Obrigado!
Abraço carinhoso. Paulo.
O leitor reencontra então o escritor Paulo Valença de sempre, os problemas sociais estão sempre presentes nos seus contos. Como bem disse Núbia: <>
ResponderExcluirParabéns contistamigo!
Abração do,
José Calvino
RecifeOlinda
Tão terrível e certeiro como um murro no estômago.
ResponderExcluirCalvino,
ResponderExcluirCom inteligência, você é prático e objetivo: em poucas frases sintetiza tudo e, sensibilizado, mais uma vez lhe digo: Obrigado!
Abraços. Paulo.
Mara,
ResponderExcluirÉ colega, a vida para uns é terrível, principalmente para os que moram em morros, favelas, conhecem a face cruel da luta pela sobrevivência.
Obrigado pelo incentivo.
Abraço afetuoso. Paulo.