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A maldade humana
* Por Paulo Valença
1
Ah, se não pensasse tanto! Fosse menos “encucada” com tudo... Mas, a gente é o que é, por mais que se tente fugir, aparentar outra personalidade.
- Essa é que é a verdade – conclui, dando voz ao que pensa, o que a incomoda.
Saí da sala e após cruzar o terraço e se debruçar sobre o murinho defronte, alonga a vista buscando a figura esguia, alta, da filha ao subir a rua ladeirada. Por que essa longa demora hoje da Rose em regressar do colégio? Por que o pressentimento ruim de que algo lhe sucederá?
- Ana você só pensa negativo. A Rose tá crescida, sabe se cuidar. A mocidade de hoje é diferente. Não é mais ingênua não. E você fica como uma coruja agourando coisas ruins! – reclama-lhe o marido, o Ernesto, vendo-a impaciente da sala ao murinho, na tentativa de ver a filha, para só assim aquietar a alma.
- Ernesto eu tenho razão de me preocupar, com tantas maldades que se sabe pelos noticiários!
- Lá vem você de novo! - protesta o companheiro, com a voz enrouquecida pela contrariedade. Os olhos dilatados. A testa franzida. Pálido. As mãos trêmulas e de repente silenciam. Entendendo-se à mesma preocupação, com o Ernesto procurando se mostrar outro, no fingimento estudado...
A noite envelhece. Pela rua embaixo, transversal, um ou outro carro, pedestre ou moto passa. Na calçada do prédio da Associação Comunitária Maria Eugênia um grupo de rapazes de short, conversa, entre gargalhadas, assovios, na descontração natural da idade. Pela avenida no alto, além das casas na inclinação do morro, um coletivo cruza-a devagar, na cautela de evitar um acidente. Um cão late distante. Um galo canta. Há essa hora? Mas...
- Ana venha se deitar. A menina tá chegando, criatura.
A voz de Ernesto, chamando-a. Ela se volta e retorna, em passos lentos. Pensativa.
- A mulher não mais assiste novela, não mais se ocupa em nada... Somente com essas “cismas” negativas.
Então, cresce a voz, enrouquecida:
- Puta merda!
Ela passa, mantendo o mutismo. Por onde anda a Rose? Numa hora dessas, já madrugada... Entra no quarto. E Ernesto erguendo o braço magro com a mão aberta penteia os cabelos lisos pra trás. No gesto que o denuncia nervoso.
A porta do quarto é fechada e ele se depara sozinho, sozinho como nunca. Os filhos tiram o sossego da gente. Amanhã terá outra conversa séria com a Rose. A filha tem sim de mudar de conduta. Aos poucos, Rose está acabando com a tranqüilidade de Ana e dele, Ernesto...
- É bronca total! – graceja, tentando se descontrair.
2
O automóvel com rapidez avizinha-se e estaciona. Dois homens saltam, enquanto o terceiro à direção ordena, gritando:
- Pega a “gatinha!”.
A jovem se volta perplexa, e sente as mãos fortes, rudes imobilizando-lhe os braços e... uma dessas mãos com o lenço ensopado, de cheiro ativo, veda-lhe o nariz. Então, de imediato, ela sente o corpo leve, flutuar, a cabeça rodar, a vista escurecer e nada mais entende, apagando-se.
Os homens aí põem o corpo desmaiado no porta-malas do carro e apressados retornam ao veículo.
- Bora irmão!
O motorista liga o carro, que parte disparado.
- Mais uma “encomenda” pra o chefe – diz o da direção e o outro no banco de trás sorri, aquiescendo:
- Pois é. “Missão cumprida”.
Então o seu parceiro, ao lado:
- Parece que tou vendo o noticiário de logo mais: “Estudante é a nova vítima do misterioso desaparecimento de adolescentes durante a noite!”.
- Mas... Eu pergunto: O que o HOMEM faz com essas garotas? – indaga o da direção, e o comparsa no banco de trás, responde:
- Ô moreno deve ser pra mandar elas pra fora, nesse negócio de venda de órgãos. É o que tá na moda...
Silenciam, entregues às conjecturas de sujeitos vividos, conhecedores da maldade, do quanto o ser humano é capaz de fazer.
O automóvel adianta-se na avenida praticamente deserta ante as trevas da nova madrugada.
(Lu Dias BH disse: Paulo Valença, o escritor dos contos curtos, você é o escritor de seu tempo).
* Paulo Valença é autor paraibano, com livros de ficção premiados nacionalmente; Verbete do Dicionário Biobibliográfico de Escritores Contemporâneos; Verbete da Enciclopédia de Literatura Contemporânea; Membro de várias instituições literárias; Presente em diversos sites; Reside em Recife/PE.
* Por Paulo Valença
1
Ah, se não pensasse tanto! Fosse menos “encucada” com tudo... Mas, a gente é o que é, por mais que se tente fugir, aparentar outra personalidade.
- Essa é que é a verdade – conclui, dando voz ao que pensa, o que a incomoda.
Saí da sala e após cruzar o terraço e se debruçar sobre o murinho defronte, alonga a vista buscando a figura esguia, alta, da filha ao subir a rua ladeirada. Por que essa longa demora hoje da Rose em regressar do colégio? Por que o pressentimento ruim de que algo lhe sucederá?
- Ana você só pensa negativo. A Rose tá crescida, sabe se cuidar. A mocidade de hoje é diferente. Não é mais ingênua não. E você fica como uma coruja agourando coisas ruins! – reclama-lhe o marido, o Ernesto, vendo-a impaciente da sala ao murinho, na tentativa de ver a filha, para só assim aquietar a alma.
- Ernesto eu tenho razão de me preocupar, com tantas maldades que se sabe pelos noticiários!
- Lá vem você de novo! - protesta o companheiro, com a voz enrouquecida pela contrariedade. Os olhos dilatados. A testa franzida. Pálido. As mãos trêmulas e de repente silenciam. Entendendo-se à mesma preocupação, com o Ernesto procurando se mostrar outro, no fingimento estudado...
A noite envelhece. Pela rua embaixo, transversal, um ou outro carro, pedestre ou moto passa. Na calçada do prédio da Associação Comunitária Maria Eugênia um grupo de rapazes de short, conversa, entre gargalhadas, assovios, na descontração natural da idade. Pela avenida no alto, além das casas na inclinação do morro, um coletivo cruza-a devagar, na cautela de evitar um acidente. Um cão late distante. Um galo canta. Há essa hora? Mas...
- Ana venha se deitar. A menina tá chegando, criatura.
A voz de Ernesto, chamando-a. Ela se volta e retorna, em passos lentos. Pensativa.
- A mulher não mais assiste novela, não mais se ocupa em nada... Somente com essas “cismas” negativas.
Então, cresce a voz, enrouquecida:
- Puta merda!
Ela passa, mantendo o mutismo. Por onde anda a Rose? Numa hora dessas, já madrugada... Entra no quarto. E Ernesto erguendo o braço magro com a mão aberta penteia os cabelos lisos pra trás. No gesto que o denuncia nervoso.
A porta do quarto é fechada e ele se depara sozinho, sozinho como nunca. Os filhos tiram o sossego da gente. Amanhã terá outra conversa séria com a Rose. A filha tem sim de mudar de conduta. Aos poucos, Rose está acabando com a tranqüilidade de Ana e dele, Ernesto...
- É bronca total! – graceja, tentando se descontrair.
2
O automóvel com rapidez avizinha-se e estaciona. Dois homens saltam, enquanto o terceiro à direção ordena, gritando:
- Pega a “gatinha!”.
A jovem se volta perplexa, e sente as mãos fortes, rudes imobilizando-lhe os braços e... uma dessas mãos com o lenço ensopado, de cheiro ativo, veda-lhe o nariz. Então, de imediato, ela sente o corpo leve, flutuar, a cabeça rodar, a vista escurecer e nada mais entende, apagando-se.
Os homens aí põem o corpo desmaiado no porta-malas do carro e apressados retornam ao veículo.
- Bora irmão!
O motorista liga o carro, que parte disparado.
- Mais uma “encomenda” pra o chefe – diz o da direção e o outro no banco de trás sorri, aquiescendo:
- Pois é. “Missão cumprida”.
Então o seu parceiro, ao lado:
- Parece que tou vendo o noticiário de logo mais: “Estudante é a nova vítima do misterioso desaparecimento de adolescentes durante a noite!”.
- Mas... Eu pergunto: O que o HOMEM faz com essas garotas? – indaga o da direção, e o comparsa no banco de trás, responde:
- Ô moreno deve ser pra mandar elas pra fora, nesse negócio de venda de órgãos. É o que tá na moda...
Silenciam, entregues às conjecturas de sujeitos vividos, conhecedores da maldade, do quanto o ser humano é capaz de fazer.
O automóvel adianta-se na avenida praticamente deserta ante as trevas da nova madrugada.
(Lu Dias BH disse: Paulo Valença, o escritor dos contos curtos, você é o escritor de seu tempo).
* Paulo Valença é autor paraibano, com livros de ficção premiados nacionalmente; Verbete do Dicionário Biobibliográfico de Escritores Contemporâneos; Verbete da Enciclopédia de Literatura Contemporânea; Membro de várias instituições literárias; Presente em diversos sites; Reside em Recife/PE.
O que fazer quando seus filhos reivindicam
ResponderExcluira tal liberdade?
Criei meu filho e o eduquei para o mundo, sei isso.
Mas, hoje quando o ouço falar em "voar" mais alto
queria estar junto, só para ter a sensação de que sob meus olhos nada de mal irá lhe acontecer...
Abraços
nubia,
ResponderExcluirÉ, amiga, a criação dos filhos, aliás, como tudo na vida, transforma-se... Mesmo assim ficamos perplexos com essas mudanças.
Às vezes, talvez por comodismo para não pensar, encarar a realidade, vejo-me velho, outro e... incapaz de encarar tudo com naturalidade, mas, o que fazer?
Temos de nos adaptar à verdade. Dura realidade.
Abraço. Paulo.
" A noite envelhece". Nós também. O mundo. E o medo segue dentro de cada um de nós. Viver mais com menos medo. Seria possível ?
ResponderExcluirParabéns pelo conto.
Beijão
Paulo, é um grande contista, num conúbio literário, entre o real e a ficção, tem a sensibilidade em criar personagens vítimas da violência... Praticamente nas circunstâncias da vida de todos nós.
ResponderExcluirAbração do,
Calvino
Celamar,
ResponderExcluir"Viver mais com menos medo. Seria possível?".
Também me indago, tanto é assim que já estou com receio de sair de casa, temendo a surpresa do inesperado... Mas, temos de viver, ter coragem para encarar tudo. Afinal, tudo na vida é um desafio!
Abraço. Paulo.
Calvino,
ResponderExcluirVocê além de bom poeta-escritor também se mostra um Mestre na crítica, em resumidas frases sintetiza tudo e... Sensibilizado, digo-lhe: Obrigado!
Abraço. Paulo.