segunda-feira, 19 de abril de 2010




Bodas de prata

* Por Celamar Maione

Lédia falava sem parar, empolgada com o sucesso da festa das bodas de prata. O marido dirigia em silêncio. Ela nem notou a tensão no rosto de Walter. Quando chegaram em casa, Walter pegou uma escada, subiu no armário e jogou a mala empoeirada no chão. Lédia apareceu no quarto:
- O que é isso? Vai fazer arrumação a essa hora?
- Não. Vou fazer as malas. O casamento acabou. Meu advogado vai tratar de tudo.
- Que brincadeira é essa? Viemos da festa das nossas bodas de prata!?
- Eu fiz o que prometi, não fiz? A festa. Gostou?
- Sabe que sim. Mas o que tem a ver com o fim do nosso casamento?
- Realizei seu sonho. Não era uma festa de bodas de prata que você queria para exibir uma felicidade falsa? Agora chegou a hora de realizar meus sonhos. Sempre ficaram por último por causa da família.
- E tem que ir embora para realizar seus sonhos? Sem nenhum motivo?
- Dou um motivo agora: o tesão acabou faz tempo.
- Do jeito que você fala, acho que nunca teve.
- Tive, sim, mas cansei das suas dores de cabeça e do seu tédio na cama.
- Casamento é mais do que sexo! São vinte e cinco anos, Walter.
- De martírio. Aparência. E começou logo depois do “ até que a morte os separe”. Se eu soubesse que as relações terminam exatamente com essa frase...
- Vamos sentar e conversar. Está faltando diálogo entre nós.
- Será que você não percebe que nunca existiu diálogo entre nós?
- A culpa é sua. Nunca quis conversar sobre as coisas erradas. Sempre fugiu.
- Lédia, coloca uma coisa na cabeça: o amor acabou junto com o tesão. Você nua e nada é a mesma coisa. Sem conversa. Dá para entender?
- Cala a boca! Você não está sendo cavalheiro.
- É a última vez que você me manda calar a boca...
- Nunca fiz por mal. Você nunca reclamou.
- Você acha que sou feliz por ter me casado com um general?
- General, Walter? Esperou justo hoje para desabafar suas mágoas?
- Se eu falasse antes, o casamento já teria terminado.
- E por que general?
- Foi no que você se transformou logo no primeiro ano de casamento.

Irritado, Walter abre o armário e joga as camisas dentro da mala, falando com voz de mulher:
- Walter, hoje a empregada não veio, lava o prato. Walter, você encheu a sala de migalha de pão. Walter, a tábua do vaso...Walter...Walter...
- Você nunca falou da sua insatisfação. Fingiu muito bem. Parecia feliz.
- Você se tornou uma grande cobradora: Walter, você pagou a conta de luz? O Eduardo tirou nota baixa na escola, conversa com ele.
- Você queria morar aqui e não fazer parte do dia a dia da casa?
- Que maneira besta você arrumou de me colocar a par das coisas. Até com as minhas unhas você implica. Está sempre de prontidão: Walter olha a sujeira. Não corta as unhas. A faxineira esteve aqui hoje.
- Você é relaxado. Não gosto de sujeira e você sabe disso.
- Custava você pegar uma vassoura? Ia cair seu braço? O amor sobrevive de pequenas gentilezas.
- Você também não podia fazer a gentileza de pegar a vassoura?
- Tá vendo? Depois de um tempo é difícil ir pra cama com uma cobradora. Sempre apontando defeitos. Foi quando passei a me interessar por outras mulheres. Cobrança corta o tesão.
- Tesão... tesão... só saber falar de sexo.
- Mas sem ele o que resta de um casamento? Você acha que eu quero ficar casado com uma irmã? Foi no que você se transformou. E numa irmã chata.
- Pensa que eu não sei das suas amantes? Aquela secretária. Como se chamava? Márcia! Ligava pra cá e quando eu atendia, desligava o telefone.

Walter deu uma gargalhada.
- Qual é a graça? Disse alguma piada?
- A Márcia nunca foi minha amante. As mulheres são ingênuas, miram sempre nas erradas.
- Vai querer me convencer que você e aquelazinha nunca foram pra cama?
- Não teria motivos para mentir.
- Os homens mentem sem motivos. Hoje descobri que casei com um adversário. E eu boba, acreditando que formávamos um casal.
- Faz tempo que deixamos de ser um casal.
- Então pega tudo o que é seu. CDS, livros, não quero nada que lembre você.
- Eu volto para pegar o resto das minhas roupas e meus livros outro dia.
- Não garanto que eles estejam aqui quando voltar.
- Não seja mesquinha. Durante todos esses anos você foi mesquinha. Sempre mais preocupada com a feira, a casa, a conta da luz, do que comigo. Seja menos mesquinha, pelo menos no dia da nossa separação.

Humilhada, atirou os vidros de perfume em cima de Walter. Ele corria pelo quarto tentando escapar.
- Nosso casamento foi uma mentira, Lédia. Quando você engravidou, nossas famílias me obrigaram a casar.
- Se eu não tivesse engravidado, você estaria me enrolando até hoje? E nossos bons momentos? Não contam?
- É passado. Não temos bons momentos faz tempo. Mas você fez questão de levar a farsa adiante. Eu me acomodei.

Nervosa, Lédia começou a tirar a roupa do marido de dentro da mala.
- Será que você conseguirá sobreviver sozinho? Hein? Quem vai lhe dar remédio quando você ficar doente?
- Não seja dramática. Me dá minha roupa. Você acha que vai me impedir? Estou decidido. Demorei vinte e cinco anos para tomar coragem.
- Você está apaixonado por outra?

Walter deu um sorriso sarcástico.
- Estou apaixonado por outras. Pela primeira vez estou livre para amar quantas eu quiser. Aos 53 anos posso gritar: sou um homem livre!

Ofegante, Lédia senta na cama, coloca a cabeça entre as mãos e pensa alto:
- O que vai ser de mim sozinha aos 50 anos? Você me roubou os melhores anos da minha vida. Nunca tive outro. Conheci você adolescente, me apaixonei, casei, tive empregos medíocres. O casamento esteve sempre em primeiro lugar.
- A culpa não é minha. Não impedi você de crescer, fez porque quis.
- Ingrato! O que me resta agora? Acompanhar as amigas solitárias ao baile dos solteiros? Dançar com os coroas cheirando a perfume ordinário? Não tem maior solidão do que essa.
- O que você vai fazer da sua vida agora não é problema meu.
- Quem sabe ir para academia pegar garotões?
- A cabeça é sua. A partir de hoje não somos mais marido e mulher.

Derrubando tudo o que viu pela frente, Lédia se desesperou:
- O que você tá fazendo comigo é covardia! Você não tem esse direito.

Quando Walter pegou a mala e seguiu em direção à porta, se jogou aos pés dele:
- Como aprender a viver sem você? Me diz. Você não me preparou para esse momento. Eu queria ficar com você a vida toda.
- Nunca estamos preparados. Mas precisamos. Seja feliz, Lédia!

Bateu a porta. Lédia ficou sozinha. O peito doía-lhe. Deu um grito. Sentiu a vida lhe escapar. Quando escutou o carro sair da garagem, foi até a geladeira e pegou uma lata de cerveja. Nunca bebera. Seria a primeira vez. Descabelada, sentada no sofá, bebeu todas as latas disponíveis.

Tonta, foi até o armário, pegou o restante das roupas de Walter, na estante recolheu os livros e CDS do marido, e subiu até o terraço. Fez uma fogueira e ficou vendo tudo queimar. Olhou para o céu e percebeu que uma estrela brilhava. Cansada, dormiu no terraço, ao lado das cinzas que restaram.

* Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos. É autora do livro de contos “Só as feias são fieis” (Editora Multifoco).

4 comentários:

  1. Tão real, tão cruel...
    Não sei se ficaria como ela, mas
    senti um pouco dessa dor. Senti o peso da
    frustração dos dois e do quanto pode ser doído
    o fim de um relacionamento.
    Parabéns Cel.
    Beijos

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  2. Muito bom, Cel!E quantas casais existem por aí em tal situação... um belo dia a casa cai, como dizem. Aí é tentar recomeçar. super beijo!

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  3. Total e completamente possível. Foi a verbalização de tantos falsos casamentos que há por aí. E só perduram pela acomodação e falta de sinceridade.
    Destaco: " Deu um grito. Sentiu a vida lhe escapar."
    Verossímel, como sempre.

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  4. Bárbaro, Cel! Um conto e tanto. Digno de figurar entre os melhores contoss do país. Tomara muitos casais o lessem e pensassem em como é triste viver o "até que a morte os una", como diz o grande Chico Buarque.Parabéns!
    Beijos

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