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Resgate possível
* Por Mara Narciso
Quando busco no baú da memória os resquícios das doces lembranças, acontece uma sensação boa, uma emoção de poder reviver o que foi vivido, algumas vezes até com mais intensidade. Quando nos distanciamos no tempo em relação a fatos perdemos a nitidez dos detalhes, mas ganhamos em racionalidade e aí repousa a força do prazer das nossas lembranças. Os gorjeios de um determinado pássaro me remetem aos meus tempos de menina, até a fazendola do meu tio-avô. Não sei se o meu gostar tem a ver com o meu gostar só, ou é a soma com o gostar da minha mãe, que sempre se encantava com aquele lugar. Parafraseando Raul Seixas, lembrar só não constrói uma imagem tão nítida quanto conseguimos fazer quando lembramos junto.
Alguns cheiros me levam a pessoas e lugares. Um sabonete preto me carrega de forma imediata a uma pessoa e a um tempo. Impossível não viajar para essa fase da vida, embarcada na estrada desse aroma. A música Madalena, de Ivan Lins me carrega agarrada no seu som, ao passado da casa de uma amiga que a tocava ao piano. Mas a importância da música vinha da importância da companhia, do instante vivido, e do verso “o mar é uma gota, comparada ao pranto meu”. Levar de volta no tempo é a norma das boas músicas. Mas evito a melancolia, pois recordar para me entristecer não é uma boa viagem.
Fala-se a toda hora que é preciso fazer novos amigos. Não que conhecer gente diferente não seja bom, porém resgatar os velhos amigos é ainda melhor. Quando começo a conversar com alguém que não vejo há muito, me sinto distante no tempo e no espaço, mas depois de falarmos um pouco, já damos gargalhadas lembrando o tanto que éramos próximos, íntimos e confiáveis. Uma das coisas boas da vida é estar ao lado de pessoas com as quais sei que posso contar. É ótimo poder ser natural, espontânea, livre para falar quantas bobagens me der vontade, sem me preocupar em procurar ser interessante ou inteligente. Ainda melhor é poder falar das minhas fraquezas e defeitos, sem receio de a pessoa usar disso um pouco adiante para me derrubar, ou tirar algum proveito. Nesse mundo onde tudo é disputado, e que não é de bom tom falar do que não sei, do que não sou, do que não tenho, do que perdi, é uma dádiva poder mostrar quem realmente eu sou. E um velho amigo é o ouvido seguro para uma boa conversa.
Ao rever o amigo de muitos anos e do qual pouco ouvia falar, posso ter no começo uma conversa sobre o tempo que passou, as nossas aparências, o peso, os cabelos, talvez a pele. Posso passear pelo mundo dos números, esses odiáveis coordenadores das nossas vidas, verdadeiros déspotas que nos oprimem. O pior é que se fingem de amigos, e estão colados na gente, a começar pelos números dos meus documentos, dos meus telefones, das minhas contas bancárias e até das minhas dívidas. É possível, no reencontro, que as perguntas passem por quantas vezes a pessoa se casou, quantos filhos teve, quanto dinheiro ganhou, ganha e acumulou, se fez fortuna, em que parte da pirâmide social está. Os temas mais prováveis seriam por esse rumo, seguindo esse prisma numérico, ou não.
Posso resgatar a amizade falando dos bons e dos maus momentos, mas também posso me deter nos grandes amores que vivi, ou nos que perdi, falar dos lugares gostosos que visitei, das emoções maravilhosas que senti, das grandes pessoas que conheci. Falar das boas ações que pratiquei, dos abraços solidários que abracei, dos olhares de gratidão que recebi, das perdas de fôlego que me sufocaram.
É possível resgatar pessoas e momentos antigos fazendo das lembranças velhas, memórias remoçadas pelo recordar junto. Mas tudo cairia em desgaste caso ficássemos tristonhos e até amargos pelo fato de o tempo ter passado. Passou, mas não acabou. O gosto está em usar o passado para construir um presente agradável, de momentos bons e seguros, já que podem ter por alicerce situações já conhecidas. Pois estar em boa companhia é poder falar e ser ouvido com atenção e respeito, e isso os velhos amigos fazem melhor do que os novos. Sem desvalorizar os chegantes, vou buscar os amigos desgarrados, e os parentes que estão distantes. Nem sei o motivo de estar só. Em algum ponto da estrada fui viver a minha vida. Rever amigos e fazer um novo presente pode ser um prazer para os que se reencontram. Esse poderá ser o verdadeiro motivo da busca pelo passado.
* Médica endocrinologista, acadêmica do oitavo período de Jornalismo, e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
* Por Mara Narciso
Quando busco no baú da memória os resquícios das doces lembranças, acontece uma sensação boa, uma emoção de poder reviver o que foi vivido, algumas vezes até com mais intensidade. Quando nos distanciamos no tempo em relação a fatos perdemos a nitidez dos detalhes, mas ganhamos em racionalidade e aí repousa a força do prazer das nossas lembranças. Os gorjeios de um determinado pássaro me remetem aos meus tempos de menina, até a fazendola do meu tio-avô. Não sei se o meu gostar tem a ver com o meu gostar só, ou é a soma com o gostar da minha mãe, que sempre se encantava com aquele lugar. Parafraseando Raul Seixas, lembrar só não constrói uma imagem tão nítida quanto conseguimos fazer quando lembramos junto.
Alguns cheiros me levam a pessoas e lugares. Um sabonete preto me carrega de forma imediata a uma pessoa e a um tempo. Impossível não viajar para essa fase da vida, embarcada na estrada desse aroma. A música Madalena, de Ivan Lins me carrega agarrada no seu som, ao passado da casa de uma amiga que a tocava ao piano. Mas a importância da música vinha da importância da companhia, do instante vivido, e do verso “o mar é uma gota, comparada ao pranto meu”. Levar de volta no tempo é a norma das boas músicas. Mas evito a melancolia, pois recordar para me entristecer não é uma boa viagem.
Fala-se a toda hora que é preciso fazer novos amigos. Não que conhecer gente diferente não seja bom, porém resgatar os velhos amigos é ainda melhor. Quando começo a conversar com alguém que não vejo há muito, me sinto distante no tempo e no espaço, mas depois de falarmos um pouco, já damos gargalhadas lembrando o tanto que éramos próximos, íntimos e confiáveis. Uma das coisas boas da vida é estar ao lado de pessoas com as quais sei que posso contar. É ótimo poder ser natural, espontânea, livre para falar quantas bobagens me der vontade, sem me preocupar em procurar ser interessante ou inteligente. Ainda melhor é poder falar das minhas fraquezas e defeitos, sem receio de a pessoa usar disso um pouco adiante para me derrubar, ou tirar algum proveito. Nesse mundo onde tudo é disputado, e que não é de bom tom falar do que não sei, do que não sou, do que não tenho, do que perdi, é uma dádiva poder mostrar quem realmente eu sou. E um velho amigo é o ouvido seguro para uma boa conversa.
Ao rever o amigo de muitos anos e do qual pouco ouvia falar, posso ter no começo uma conversa sobre o tempo que passou, as nossas aparências, o peso, os cabelos, talvez a pele. Posso passear pelo mundo dos números, esses odiáveis coordenadores das nossas vidas, verdadeiros déspotas que nos oprimem. O pior é que se fingem de amigos, e estão colados na gente, a começar pelos números dos meus documentos, dos meus telefones, das minhas contas bancárias e até das minhas dívidas. É possível, no reencontro, que as perguntas passem por quantas vezes a pessoa se casou, quantos filhos teve, quanto dinheiro ganhou, ganha e acumulou, se fez fortuna, em que parte da pirâmide social está. Os temas mais prováveis seriam por esse rumo, seguindo esse prisma numérico, ou não.
Posso resgatar a amizade falando dos bons e dos maus momentos, mas também posso me deter nos grandes amores que vivi, ou nos que perdi, falar dos lugares gostosos que visitei, das emoções maravilhosas que senti, das grandes pessoas que conheci. Falar das boas ações que pratiquei, dos abraços solidários que abracei, dos olhares de gratidão que recebi, das perdas de fôlego que me sufocaram.
É possível resgatar pessoas e momentos antigos fazendo das lembranças velhas, memórias remoçadas pelo recordar junto. Mas tudo cairia em desgaste caso ficássemos tristonhos e até amargos pelo fato de o tempo ter passado. Passou, mas não acabou. O gosto está em usar o passado para construir um presente agradável, de momentos bons e seguros, já que podem ter por alicerce situações já conhecidas. Pois estar em boa companhia é poder falar e ser ouvido com atenção e respeito, e isso os velhos amigos fazem melhor do que os novos. Sem desvalorizar os chegantes, vou buscar os amigos desgarrados, e os parentes que estão distantes. Nem sei o motivo de estar só. Em algum ponto da estrada fui viver a minha vida. Rever amigos e fazer um novo presente pode ser um prazer para os que se reencontram. Esse poderá ser o verdadeiro motivo da busca pelo passado.
* Médica endocrinologista, acadêmica do oitavo período de Jornalismo, e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
Rever amigos de "ontem" é muito bom
ResponderExcluirconservo uns poucos, que nunca me parecem
distantes.
Mas, sou um canal aberto ao novo e muitas vezes me deparo com novos amigos que parecem já terem feito parte da minha vida.
E assim vou levando, quebro a cara algumas vezes mas, sempre vale a pena.
Beijos
Belo texto, Mara.
ResponderExcluirEssa impossibilidade de carregar conosco 100% do que vivemos é algo que nos angustia, e o que vale é a sabedoria em efetuar pequenos porém valiosos resgates sempre que possível. Valeu a leitura!
Mara,
ResponderExcluirnão acredito que " rever" amigos é buscar o passado. Tenho amigos desde a infância. Ontem mesmo, almocei com uma amiga de longa data . Nos conhecemos desde os oito anos de idade. Crescemos juntas. Dividimos muitos momentos. Durante cinco anos, ou mais, ela morou em Angola e hoje vive em Belém. Nunca deixamos nossa amizade morrer. Nos falamos por telefone nos nossos aniversários e datas festivas e nos encontramos sempre que ela vem ao Rio. Computador pra ela, nem pensar ! Só para trabalho. Ela nem orkut tem e detesta e-mail.
Também fico muito feliz de estar com amigos de longa data. Podemos relaxar e melhor, parece que o tempo nem passou....
Cheiros também me levam a pessoas, lugares, momentos. Impressionante !
Adorei o texto com gosto de saudade !
Beijos
A medida que os anos passam, o reatamento vai se tornando mais improvável. Mesmo assim, surpresas deliciosas nos são reservadas. Tive algumas oportunidades recentes, após um afastamento de mais de três décadas, que foram/estão sendo deliciosas.
ResponderExcluirNúbia e Marcelo, obrigada pela participação que sempre acrescenta muito ao texto.
Celamar, mantenho amizades de menina, e que nunca houve afastamento, exceto uma ou outra pequena interrupção por contingências. Nesses casos, não há busca pelo passado. Quando há um afastamento total, sem notícia alguma por longos períodos (desconexão total), e há o reencontro, nem sempre em busca do passado, esse vem, sem pedir licença e pode ser muito bom.
ResponderExcluirAgradeço a sua contribuição.
Que lindo texto, Mara. Realmente,se reler um livro é uma coisa tão agradável, imagine rever os antigos amigos...São pessoas com quem partilhamos momentos felizes, momentos difícies. Pessoas que nos conhecem profundamente e às quais é possível dizer tudo, sem medo de ser mal interpretada. Adorei seu texto!
ResponderExcluirBeijos
Estou vivencinando isso com três pessoas atualmente, e está muito interessante e agradável. Obrigada Risomar!
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