segunda-feira, 26 de abril de 2010




Quarto 27, ala C, não me esqueça

* Por Eduardo Murta

Há três datas que marejam à memória de Adriano, como fossem irremediável apagar e reacender de luzes. Um 2 de julho em que, Praça da Savassi, topou com os olhos de Marina. Fatal. Deram volteios, tornaram a cruzar as miradas, e o chocolate flambado em conhaque assentando-se à mesa dela foi seu delicado cartão de visitas. Se amariam em todas as escalas possíveis. Até, dois invernos intensos, vir um 11 de setembro que a empurraria para um coma que parecia definitivo. Repentino. Sem um quê sequer de alerta. A terceira data é um 21 de abril despretensioso, mas que chegará feito onda de arrebentação aos primeiros sinais da manhã. Antes, muitos meses antes, percebam como o mal em Marina o corrói, a ponto de se deixar em barba a fazer, esquecer as janelas do carro abertas com freqüência, atrasar as contas de banco. Pior: recolher-se, ao estilo ostra, que os amigos imaginavam andar namorando a ideia de morte.

Foi, aos poucos, se habituando à rotina hospitalar. As visitas diárias, os nomes dos médicos, e logo seria capaz de antever que medicamento estaria incorporado aos tratamentos. Pesquisou a fundo as questões do cérebro, que travaria diálogos fundamentados com os especialistas. Mais do que isso, não se descuidou do amor. Abria as semanas com o buquê de rosas colombianas que ela adorava, lia-lhe poemas pausadamente, e programava cabeleireira, manicure e maquiadora ao menos uma vez ao mês.

E, fundamental, jamais se desprendeu da esperança de que ela voltaria. O drama se aproxima agora do terceiro ano. Percebam Marina perto dos 36, e Adriano mantendo os rituais de acolhimento à esposa. A ninguém revela, mas trancou-se em abstinência sexual desde a tragédia. Apega-se cegamente ao que faria viva a relação. Assiste ao vídeo do casamento semanalmente e dele decorou as falas fazia tempos.

Mal notava o que se passava a sua volta. Assim, um nada saberia da tragissemelhança que guardavam as histórias dos quartos 27, de Marina, e do 11, ambos na mesma ala C do hospital. Foi conhecê-lo em cenários de elevador. Uma mulher, em ares de viúva, falando ao doutor sobre a condição do marido. Num coma que já beirava os 30 meses, sem horizonte qualquer. Nem quando, nem como, e nem se retornaria um dia.

A primeira palavra que dirigiriam um ao outro veio numa madrugada de choro convulsivo nas cadeiras da enfermagem. Ele cuidou unicamente de estender-lhe um lenço. Ofereceu água. Se chamava Larissa. Meio da madrugada, já haviam contado por inteiro de seus desastres pessoais. Os encontros seguintes, semanas à frente, foram menos cerimoniosos. Falaram de cinema, do futuro do país, de plantas e arquitetura, vinhos...

E veio em seguida aquela atmosfera de que, para além da tragédia, algo mais os unia. Se afeiçoaram. Numa noite as mãos casualmente se tocaram. Mornas, quentes, vulcânicas, explosivas. Em instantes, eram um corpo uniforme, numa volúpia contida, sobre o sofá de acompanhante no quarto 27. Quinta posterior, variaram, desta vez no quarto 11. Mergulharam num silêncio de querer, de segredo, reverência e, no fundo, culpa.

Desembocaram num dezembro em que, cinema, jogos de futebol, teatro virando rotineiros, resolveram se assumir. Cada um convocou isoladamente com suas famílias, as dos doentes presentes, para comunicar. Foi trágico. Doloroso. Mas era preciso. Haviam finalmente se convertido em casal. Ou meio casal. Planejavam filhos. Casa nova. Experimentavam a naturalidade da convivência. Até baterem naquele 21 de abril. Começo de manhã, o telefonema. Era para Adriano, do hospital: “Sua mulher acordou! Sorriu.... E balbuciou seu nome”.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.

4 comentários:

  1. E agora?
    Abrir mão da vida, de ser feliz?
    Como resgatar a paixão esquecida
    há tanto tempo em razão do sofrimento?
    Belo dilema Murta, e te confesso que não
    sei se me sacrificaria...
    Parabéns.
    beijos

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  2. Eu também não sei. Ainda bem que fica para o personagem.....

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  3. Já teve uma novela com uma outra novela dentro. Aqui há uma tragédia dentro da tragédia. As rosas colombianas me tocaram. Amar defunto vivo é cruel. Acordando a mulher, a culpa some. Ficou menos difícil de resolver.

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  4. Facílimo de resolver: esperar alguns dias e contar sobre a nova paixão. Nada como a verdade. Difícil é se saber traído. História muito bem construida.
    Parabéns!

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