segunda-feira, 19 de abril de 2010




Por uma taça envenenada em esquecimento

* Por Eduardo Murta

Do mal de se converter em viúva de marido morto Dalila se prometera jamais padecer. Cumprira tal mandamento à risca nos primeiros anos de casamento, mas agora um leve exame sobre o termômetro da relação seria revelador: fracassara em abundância. Fosse no zelo pela romantização diária de tudo que os cercasse, fosse pelo compromisso de manter o corpo impecável. Relaxara por inteiro. E fazia alguns dezembros que já vinha renovando seu contrato no clubinho dos que pagam imposto sentimental. Alongando a relação a um ponto em que as agendas de ambos terminassem por variar de uma extremidade à outra. Contabilizava as disparidades e apontava em suas anotações: ele à cama, ela à tevê; ela à cozinha, ele ao computador; ele ao cinema, ela às compras.

Sequer discutiam. Um silêncio mastodôntico e uma cordialidade quase teatral imperando. Daí ela ir se convencendo de que o distanciamento naquele começo de ano era coisa irreparável, razão para pôr um ponto final na vida a dois. Quisesse, não faltaria uma coleção de circunstâncias a que elencasse, uma a uma, sem direito de defesa.

O velório da avó, polidamente evitado, o aniversário de primeiro encontro solenemente esquecido. Ah, se fartara daquilo. Romperia na manhã de sábado, porque cada um teria o final de semana para se arranjar e a segunda para recomeçar. Noutra ponta, Arildo, era visível, se arrastava em casa. Interesse zero pelas roupas novas dela. Irritação ao cubo no plano de endividamento a que, três em três meses, renovasse o estoque de perfumes.

Julgava que já passara do tempo de recomeçar. Sem ela. Foi afiando o discurso, para quando baixasse coragem. Fim de semana qualquer, quatro canas na cabeça, cuidaria de desatar aqueles nós. Pensava, e a frase do amigo Chico ficando desgraçadamente palpável. Ecoando: casado por dez anos, se o terno da cerimônia não lhe servir mais, há duas alternativas: regime ou separação!

Ele resistindo a distanciar-se um milímetro das dietas de pé de porco, feijoada e churrascão com a turma do futebol. Mirava unicamente em se ver fora da rotina de casal. Até os papéis com o advogado já havia sondado. E, tanto consultar, vinha decorando as ofertas de aluguel em apartamentos de um quarto. Fizera, na caderneta, um exercício da partilha. Discos para ele, livros para ela. As dívidas... dividiriam.

Veio, enfim, o final de semana em que planejavam secretamente se desfazer um do outro. Dalila em rolinhos à cabeça. Aparentava assim ter para além de seus 32 anos. E Arildo em roupão de aposentado, pantufas, inda que beirasse os 40. Entre um comercial e outro de tevê, foi ela quem tomou a palavra. Ar mais solene que o trivial, dizendo que tinham coisas importantes a conversar.

Tropeçou na forma de começar. Respirou fundo. Fitou o marido. Uma sensação de furor cardíaco se misturando ao estado de gelo das mãos. Os lábios num ressecamento que denunciava, pronunciou o nome dele duas vezes. E emendou: “Mandei arrumar seu terno, alarguei três dedos...”. Ele, entre surpreso e desconcertado, virou refém da contracortesia. Propôs brinde à dedicação dela. E beberam, beberam, beberam naquele domingo. A ponto de se desplugarem. Se embriagarem na sutil taça do esquecimento. Doce remédio. Doce veneno.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.

2 comentários:

  1. São decisões difíceis, atitudes que
    depois não tem volta.
    Porém necessárias para que os indivíduos
    se resgatem.
    Abraços Murta

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  2. Maravilhoso! Quem não conhece um casal assim? Amigos no esquecimento do álcool, sem coragem para a ruptura, vão ficar mais dez anos assim, na insatisfação da solidão a dois. Perfeitas reflexões!

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